terça-feira, 13 de março de 2012

Lei de meios precisa de apoio popular


Ao governo cabe a tarefa de popularizar esse debate convocando, por exemplo, cadeias nacionais de rádio e TV para explicá-las à sociedade. Caso contrário corremos o risco de ter uma nova lei moldada segundo os mesmos interesses que hoje controlam a mídia brasileira.

(*) Artigo publicado originalmente na Revista do Brasil, edição de março de 2012.

Há exatos 13 anos, completados em março, estive com a então deputada Marta Suplicy no gabinete do Ministro das Comunicações Pimenta da Veiga. Integrávamos a Ong Tver e ele o segundo governo de FHC.

A audiência tinha a ver com as manifestações recebidas pela Ong sobre a qualidade da programação da TV brasileira que, naquele momento, parecia ter chegado ao fundo do poço. Ratinho estava no auge.

Repudiávamos qualquer tipo de censura, entendendo que o problema só poderia ser enfrentado com a existência de leis claras e objetivas, formuladas democraticamente e aprovadas pelo Congresso Nacional.

Estávamos no gabinete do ministro para saber se ele concretizaria a promessa do seu antecessor, Sérgio Motta, de colocar em discussão o projeto de uma Lei de Comunicação Eletrônica de Massa para substituir o velho Código Brasileiro de Telecomunicações, de 1962, já àquela altura totalmente ultrapassado.

Não fomos felizes. O ministro parecia desconhecer o assunto, pedindo seguidas informações aos auxiliares. Ainda assim prometeu que até o final daquele ano realizaria debates públicos sobre o projeto em sete capitais brasileiras. Realizou um, fechadíssimo em Brasília, e nada mais.
Vivi o caso de perto, por isso conto aqui. Mas ele não é excepcional, é apenas exemplar. Faz parte da luta pela regulação da comunicação no Brasil, iniciada antes da Constituinte de 1988, persistindo até hoje.

Nela defrontam-se grupos da sociedade em defesa de uma lei para a comunicação, os empresários do setor beneficiários do vazio legal que lhes permite obter lucros fabulosos sem contrapartida social e os governos ameaçando entrar em cena mas recuando sempre, temerosos do poder da mídia.

Chegamos a 2012 com o aceno de que agora a sociedade será consultada sobre os termos da futura lei. Não se sabe, até aqui, quais as propostas formuladas ao final do governo Lula e encaminhadas ao novo ministro das Comunicações serão aproveitadas nessa consulta.

No entanto há uma condição prévia para que ela reflita a vontade popular: a realização de ampla divulgação pelo governo do que está sendo discutido. Se não, mais uma vez, os meios hegemônicos confundirão a sociedade.

Dirão, como vêm dizendo, que tudo não passa de uma nova forma de censura. Seguirão escamoteando a existência de um mercado de comunicações altamente concentrado, cujos meios ao recortarem o mundo segundo seus interesses, esquecem os da maioria, exercendo – ai sim – uma verdadeira censura.

Para que a manifestação da população seja consciente, três pontos precisam ficar bem claros para todos:

- O rádio e a TV ocupam um espectro eletromagnético escasso e finito operando, por isso, como concessões públicas, outorgadas pelo Estado em nome da sociedade. A qualidade dos serviços prestados deve ser controlada pelos usuários, como em qualquer concessão (de empresas de ônibus, por exemplo).

- A regulação de conteúdo (classificação indicativa e preferência para finalidades educativas, artísticas, culturais e informativas) aplica-se apenas ao rádio e à TV, conforme determina a Constituição e não aos jornais e revistas. Os veículos comerciais costumam confundir as coisas dizendo que a regulação se aplicaria a toda mídia para sustentar a falsa ideia da censura. Outra falácia é a de que o controle remoto é o melhor controle, como se a oferta de programações não fosse limitada e semelhante. No limite é mudar de canal para ver a mesma coisa no outro.

- A propriedade cruzada dos meios de comunicação (uma empresa controlando vários meios: rádio, jornais, revistas, TV, gravadoras etc) deve ser abolida. Só assim haverá espaço para que mais pessoas e grupos sociais possam se expressar livremente através dos meios de comunicação, garantindo a diversidade e a pluralidade de ideias. Hoje só possui liberdade de expressão quem pertence a uma das poucas famílias controladoras dos meios de comunicação no Brasil.

Ao governo cabe a tarefa de popularizar essas questões convocando, porexemplo, cadeias nacionais de rádio e TV para explicá-las à sociedade. Caso contrário corremos o risco de ter uma nova lei moldada segundo os mesmos interesses que hoje controlam a mídia brasileira.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

A memória como direito e tarefa civilizatória

No debate "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso), em Porto Alegre, Boaventura Sousa Santos defendeu que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". E Leonardo Boff definiu a memória como uma prática subversiva que aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas.
Maria Inês Nassif

Porto Alegre - "Se não tiver vaias e aplausos no Fórum Social Mundial, não será Fórum Social Mundial". Com a frase, a ministra da Secretaria dos Direitos Humanos, Maria do Rosário, acabou acenando a bandeira branca à multidão que lotou o auditório da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), no início da noite de sexta-feira (27), no evento "Direitos Humanos, Justiça, Lutas e Memórias", promovido pelo Conselho Latinoamericano de Ciências Sociais (Clacso). Maria do Rosário foi a terceira a tomar a palavra, depois que o auditório lotado consagrou, com palmas, o cientista político Emir Sader e o teólogo Leonardo Boff. Depois dela, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos veio em seu socorro, lembrando que o governo brasileiro era cheio de contradições internas e que o público que a vaiava deveria fortalecê-la para que cumprisse os compromissos assumidos em seu discurso, de luta pelos direitos humanos. "Eu confio 100% no que ela disse", afirmou Boaventura.

O conflito com a plateia, que até então a aplaudia, começou quando a ministra citou os povos indígenas dentro das políticas de direitos humanos do governo. "Belo Monte, Belo Monte", gritaram alguns presentes. Antes dessa menção, quando começava a descorrer sobre as populações vulneráveis que precisavam da atenção do Estado para garantia de direitos, algumas pessoas lembraram: "Haiti". Na segunda provocação, a ministra reagiu.

"Não me provoca Haiti ou Belo Monte. Irei daqui a dois dias ao Haiti para reiterar que não faremos com os haitianos o que outros países fazem com
brasileiros imigrantes. O que ofende a sensibilidade humana é quando os imigrantes são tratados como escória, e não como parte da humanidade", disse a ministra. Afirmou, ainda, que estava sob responsabilidade de sua pasta a transição da missão de caráter militar que o Brasil hoje mantém naquele país em missão humanitária. Nesse momento, ganhou mais aplausos que vaias.

O placar virou no momento seguinte, quando ela falou de Belo Monte. "Belo Monte tem que ser pensado a a partir do entendimento global de uma agenda de desenvolvimento para o país", disse, incluindo nesse pacote as reformas urbana e agrária. E, enfim, lembrou os episódios da reintegração de posse do bairro Pinheirinho, em São José dos Campos. "Pinheirinho é a marca da intolerância", afirmou, assinalando, enfim, um compromisso com a plateia:

"Diante de vocês, eu digo que unós faremos tudo para que cada projeto da agenda de desenvolvimento seja constituído com autonomia tecnológica, soberania e respeito aos povos originários", concluiu, para ouvintes ainda divididos.

Pinheirinho também esteve presente nas intervenções de outros convidados, como uma herança trágica e cultural de um passado autoritário, do qual a memória foi subtraída. "Pinheirinho é o passado, o presente e n ão queremos que seja o futuro", afirmou Sader. "Nós todos somos Pinheirinho", reiterou o presidente da União Nacional dos Estudantes, Daniel Iliescu.

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos afirmou que "o grande desafio do direito à memória é que é o direito ao futuro, mas também ao passado e ao presente". Diferenciou o direito à memória do direito à história. "O direito à história é o direito às histórias silenciadas pelo saber e pelo poder oficial. São aquelas histórias que aprendemos nas escolas e que vigoram como sendo a verdade dos tempos. A isso chamo de sociologia dos ausentes", disse. É o silêncio em relação aos oprimidos, discriminados e ao sofrimento humano.

"O direito à memória é outra coisa. É o direito a vivências e experiências pessoais que constituíram a subjetividade [de indivíduos], e que eles têm que lembrar e serem respeitados por isso", explicou. Segundo Boaventura, a verdade histórica existe para essas pessoas, mas a subjetividade dessa memória permite apenas o seu conhecimento, jamais sua transmissão. "A verdade para eles está inscrita nos seus corpos, no seu sofrimento. Essa memória é intransmissiva porque as dimensões do sofrimento nunca se pode transmitir, mas pode ser reconhecida." O silenciamento, neste caso, também "torna impronunciável a revolta".
Propondo-se a ampliar o tema do direito à memória para o plano mundial, Boaventura inscreveu a escravatura como o episódio até hoje submerso pelo esquecimento. "Esta é uma história muito complexa, porque não é apenas dos financiadores europeus, mas a história dos africanos que escravizaram suas populações para vendê-las aos europeus". O peso dessa ausência de memória, segundo ele, até hoje resulta em revoluções, na África e na Ásia, e o colonialismo, todavia, é uma história que só começa a ser contada.

O colonialismo degradou colonizados e colonizadores, afirmou Santos. "Vejam a desgraça na Europa, que ficou cinco séculos a dizer às pessoas as virtudes da democracia e do desenvolvimento, e agora, numa crise econômica e financeira, não tem uma solução para os seus problemas e não sustenta a democracia". A Europa, que impôs o colonialismo ao mundo, agora está colonizada, mas por outros reis, disse Boaventura. Segundo ele, os primeiros ministros da Grécia e da Itália e presidente do Banco Central Europeu são, todos eles, ex-funcionários da Goldman Sachs.

Leonardo Boff afirmou que "a memória é subversiva porque aponta os que fizeram as atrocidades e restitui a dignidade das vítimas". E é uma "tarefa civilizatória". "Famílias tem direito não apenas à memória resgatada, mas dos restos que sobraram de sua dignidade, ossos e corpos. Para que nunca mais se esqueça e nunca mais aconteça", concluiu o teólogo.