quarta-feira, 20 de junho de 2012

Documentos revelam detalhes da tortura sofrida por Dilma em Minas

A presidente Dilma Vana Rousseff foi torturada nos porões da ditadura em Juiz de Fora, Zona da Mata mineira, e não apenas em São Paulo e no Rio de Janeiro, como se pensava até agora. Em Minas, ela foi colocada no pau de arara, apanhou de palmatória, levou choques e socos que causaram problemas graves na sua arcada dentária.

Por Sandra Kiefer, no jornal Estado de Minas


Dilma presa "Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu"
É o que revelam documentos obtidos com exclusividade pelo Estado de Minas , que até então mofavam na última sala do Conselho dos Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG). As instalações do conselho ocupam o quinto andar do Edifício Maletta, no Centro de Belo Horizonte. Um tanto decadente, sujeito a incêndios e infiltrações, o velho Maletta foi reduto da militância estudantil nas décadas de 1960 e 70.

Perdido entre caixas-arquivo de papelão, empilhadas até o teto, repousa o depoimento pessoal de Dilma, o único que mereceu uma cópia xerox entre os mais de 700 processos de presos políticos mineiros analisados pelo Conedh-MG. Pela primeira vez na história, vem à tona o testemunho de Dilma relatando todo o sofrimento vivido em Minas na pele da militante política de codinomes Estela, Stela, Vanda, Luíza, Mariza e também Ana (menos conhecido, que ressurge neste processo mineiro). Ela contava então com 22 anos e militava no setor estudantil do Comando de Libertação Nacional (Colina), que mais tarde se fundiria com a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dando origem à VAR-Palmares.

As terríveis sessões de tortura enfrentadas pela então jovem estudante subversiva já foram ditas e repisadas ao longo dos últimos anos, mas os relatos sempre se referiam ao eixo Rio-São Paulo, envolvendo a Operação Bandeirantes, a temida Oban de São Paulo, e a cargeragem na capital fluminense. Já o episódio da tortura sofrida por Dilma em Minas, onde, segundo ela própria, exerceu 90% de sua militância durante a ditadura, tinha ficado no esquecimento. Até agora.

Com a palavra, a presidente: “Algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. Geralmente, o básico era o choque”. Ela continua: “(...) se o interrogatório é de longa duração, com interrogador experiente, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes usava palmatória; usaram em mim muita palmatória. Em São Paulo, usaram pouco este ‘método’”.

Bilhetes

Dilma foi transferida em janeiro de 1972 para Juiz de Fora, ficando presa possivelmente no quartel da Polícia do Exército, a 4ª Companhia da PE. Nesse ponto do depoimento, falham as memórias do cárcere de Dilma e ela crava apenas não ter sido levada ao Departamento de Ordem e Política Social (Dops) de BH. Como já era presa antiga, a militante deveria ter ido a Juiz de Fora somente para ser ouvida pela auditoria da 4ª Circunscrição Judiciária Militar (CJM). Dilma pensou que, como havia ocorrido das outras vezes, estava vindo de São Paulo a Minas para a nova fase do julgamento no processo mineiro. Chegando a Juiz de Fora, porém, ela afirma ter sido novamente torturada e submetida a péssimas condições carcerárias, possivelmente por dois meses.

Nesse período, foi mantida na clandestinidade e jogada em uma cela, onde permaneceu na maior parte do tempo sozinha e em outra na companhia de uma única presa, Terezinha, de identidade desconhecida. Dilma voltou a apanhar dos agentes da repressão em Minas porque havia a suspeita de que Estela teria organizado, no fim de 1969, um plano para dar fuga a Ângelo Pezzuti, ex-companheiro da organização Colina, que havia sido preso na ex-Colônia Magalhães Pinto, hoje Penitenciária de Neves. Os militares haviam conseguido interceptar bilhetinhos trocados entre Estela (Stela nos bilhetes, codinome de Dilma) e Cabral (Ângelo), contendo inclusive o croqui do mapa do presídio, desenhado à mão (veja reproduções ao lado).

Seja por discrição ou por precaução, Dilma sempre evitou falar sobre a tortura. Não consta o depoimento dela nos arquivos do grupo Tortura Nunca Mais, nem no livro Mulheres que foram à luta armada, de Luiz Maklouf, de 1998. Só mais tarde, em 2003, ele conseguiria que Dilma contasse detalhes sobre a tortura que sofrera nas prisões do Rio e de São Paulo. Em 2005, trechos da entrevista foram publicados. Naquela época, a então ministra acabava de ser indicada para ocupar a Casa Civil.

O relato pessoal de Dilma, que agora se torna público, é anterior a isso. Data de 25 de outubro de 2001, quando ela ainda era secretária das Minas e Energia no Rio Grande do Sul, filiada ao PDT e nem sonhava em ocupar a cadeira da Presidência da República. Diante do jovem filósofo Robson Sávio, que atuava na coordenação da Comissão Estadual de Indenização às Vítimas de Tortura (Ceivt) do Conedh-MG, sem remuneração, Dilma revelou pormenores das sessões de humilhação sofridas em Minas. “O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente pelo resto da vida”, disse.

Humilde Apesar de ser ainda apenas a secretária das Minas e Energia, a postura de Dilma impressionou Robson: “A secretária tinha fama de durona. Ela já chegou ao corredor com um jeito impositivo, firme, muito decidida. À medida que foi contando os fatos no seu depoimento, ela foi se emocionando. Nós interrompemos o depoimento e ela deixou a sala com uma postura diferente em relação ao momento em que entrou. Saiu cabisbaixa”, conta ele, que teve três dias de prazo para colher sete depoimentos na capital gaúcha. Na avaliação de Robson, Dilma teve uma postura humilde para a época ao concordar em prestar depoimento perante a comissão. “Com ou sem o depoimento dela, a comissão iria aprovar a indenização de qualquer jeito, porque já tinha provas suficientes. Mas a gente insistia em colher os testemunhos, pois tinha a noção de estar fazendo algo histórico”, afirma o filósofo.

"Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu"

Dilma chorou. Essa é uma das lembranças mais vivas na memória do filósofo Robson Sávio, que, ao lado de outra voluntária do Conselho de Direitos Humanos de Minas Gerais (Conedh-MG), foi ao Rio Grande do Sul coletar o testemunho da então secretária das Minas e Energia daquele estado sobre a tortura que sofrera nos anos de chumbo. Com fama de durona, a então moradora do Bairro da Tristeza, em Porto Alegre, tirou a máscara e voltou a ter 22 anos. Revelou, em primeira mão, que as torturas físicas em Juiz de Fora foram acrescidas de ameaças de dano físico deformador: “Geralmente me ameaçavam de ferimentos na face”.

Não eram somente ameaças. Segundo fez constar no depoimento pessoal, Dilma revelou, pela primeira vez, ter levado socos no maxilar, que podem explicar o motivo de a presidente ter os dentes levemente projetados para fora. “Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu”, disse. Para passar a dor de dente, ela tomava Novalgina em gotas, de vez em quando, na prisão. “Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz (o implacável capitão Alberto Albernaz, do DOI-Codi de São Paulo) completou o serviço com um soco, arrancando o dente”, completou.

Mais tarde, durante a campanha presidencial, em 2010, Dilma faria pelo menos três correções de ordem estética, que incluíram uma plástica facial, a troca dos óculos por lentes de contato e a chance de, finalmente, realinhar a arcada dentária. Na mesma época, Dilma combateu e venceu um câncer no sistema linfático. Guerreira, a presidente suavizou as marcas deixadas pelo passado na pele. Não tocou, porém, nas marcas impressas na alma. “As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim”, definiu Dilma em 2001, no depoimento emocionado à comissão mineira, 11 anos antes de ser criada a Comissão Nacional da Verdade, no mês passado. Leia a seguir trechos do depoimento de Dilma.

Fuga pela Rua Goiás

“Eu comecei a ser procurada em Minas nos dias seguintes à prisão de Ângelo Pezzuti. Eu morava no Edifício Solar, com meu marido, Cláudio Galeno de Magalhães Linhares, e numa noite, no fim de dezembro de 1968, o apartamento foi cercado e conseguimos fugir, na madrugada. O porteiro disse aos policiais do Dops de Minas que não estávamos em casa. Fugimos pela garagem que dá para a rua do fundo, a Rua Goiás.”

Ligações com Ângelo

“Fui interrogada dentro da Operação Bandeirantes (Oban) por policiais mineiros que interrogavam sobre processo na auditoria de Juiz de Fora e estavam muito interessados em saber meus contatos com Ângelo Pezzuti, que, segundo eles, já preso, mantinha comigo um conjunto de contatos para que eu viabilizasse sua fuga. Eu não tinha a menor ideia do que se tratava, pois tinha saído de BH no início de 69 e isso era no início de 70. Desconhecia as tentativas de fuga de Pezzuti, mas eles supuseram que se tratava de uma mentira. Talvez uma das coisas mais difíceis de você ser no interrogatório é inocente. Você não sabe nem do que se trata.”

Dente podre

“Uma das coisas que me aconteceu naquela época é que meu dente começou a cair e só foi derrubado posteriormente pela Oban. Minha arcada girou para o lado, me causando problemas até hoje, problemas no osso do suporte do dente. Me deram um soco e o dente se deslocou e apodreceu. Tomava de vez em quando Novalgina em gotas para passar a dor. Só mais tarde, quando voltei para São Paulo, o Albernaz completou o serviço com um soco, arrancando o dente.”

Pau de arara

“...algumas características da tortura. No início, não tinha rotina. Não se distinguia se era dia ou noite. O interrogatório começava. Geralmente, o básico era choque. Começava assim: ‘Em 1968 o que você estava fazendo?’ e acabava no Ângelo Pezzuti e sua fuga, ganhando intensidade, com sessões de pau de arara, o que a gente não aguenta muito tempo.”

Palmatória

“Se o interrogatório é de longa duração, com interrogador ‘experiente’, ele te bota no pau de arara alguns momentos e depois leva para o choque, uma dor que não deixa rastro, só te mina. Muitas vezes também usava palmatória; usava em mim muita palmatória. Em São Paulo usaram pouco esse ‘método’. No fim, quando estava para ir embora, começou uma rotina. No início, não tinha hora. Era de dia e de noite. Emagreci muito, pois não me alimentava direito.”

Local da tortura

“Acredito hoje ter sido por isso que fui levada no dia 18 de maio de 1970 para Minas Gerais, especificamente para Juiz de Fora, sob a alegação de que ia prestar esclarecimentos no processo que ocorria na 4ª CJM. Mas, depois do depoimento, eu fui levada (ou melhor, teria de ser levada para São Paulo), mas fui colocada num local (encapuzada) que sobre ele tinha várias suposições: ou era uma instalação do Exército ou Delegacia de Polícia. Mas acho que não era do Exército, pois depois estive no QG do Exército e não era lá.”

“Nesse lugar fiquei sendo interrogada sistematicamente. Não era sobretudo sobre minha militância em Minas. Supuseram que, tendo apreendido documentos do Ângelo (Pezzutti) que integram o processo, achavam que nossa organização tinha contatos com as polícias Militar ou Civil mineiras que possibilitassem fugas de presos. Acredito ter sido por isso que a tortura foi muito intensa, pois não era presa recente; não tinha ‘pontos’ e ‘aparelhos’ para entregar.”

Tortura psicológica

“Tinha muito esquema de tortura psicológica, ameaças. Eles interrogavam assim: ‘Me dá o contato da organização com a polícia?’ Eles queriam o concreto. ‘Você fica aqui pensando, daqui a pouco eu volto e vamos começar uma sessão de tortura.’ A pior coisa é esperar por tortura.”

Ameaças
“Depois (vinham) as ameaças: ‘Eu vou esquecer a mão em você. Você vai ficar deformada e ninguém vai te querer. Ninguém vai saber que você está aqui. Você vai virar um ‘presunto’ e ninguém vai saber’. Em São Paulo me ameaçaram de fuzilamento e fizeram a encenação. Em Minas não lembro, pois os lugares se confundem um pouco.”

“Acho que nenhum de nós consegue explicar a sequela: a gente sempre vai ser diferente. No caso específico da época, acho que ajudou o fato de sermos mais novos; agora, ser mais novo tem uma desvantagem: o impacto é muito grande. Mesmo que a gente consiga suportar a vida melhor quando se é jovem, fisicamente, a médio prazo, o efeito na gente é maior por sermos mais jovens. Quando se tem 20 anos o efeito é mais profundo, no entanto, é mais fácil aguentar no imediato.”

Sozinha na cela
“Dentro da Barão de Mesquita (RJ), ninguém via ninguém. Havia um buraquinho na porta, por onde se acendia cigarro. Na Oban (Operação Bandeirantes), as mulheres ficavam junto às celas de tortura. Em Minas sempre ficava sozinha, exceto quando fui a julgamento, quando fiquei com a Terezinha. Na ida e na vinda todas as mulheres presas no Tiradentes sabiam que eu estava presa: por exemplo, Maria Celeste Martins e Idoina de Souza Rangel, de São Paulo.”

Visita da mãe

“Em Minas, estava sozinha. Não via gente. (A solidão) era parte integrante da tortura. Mas a minha mãe me visitava às vezes, porém, não nos piores momentos. Minha mãe sabia que estava presa, mas eles não a deixavam me ver. Mas a doutora Rosa Maria Cardoso da Cunha, advogada, me viu em São Paulo, logo após a minha chegada de Minas. Hoje ela mora no Rio e posso contatá-la ”

Cena da bomba

“Em Minas, fiquei só com a Terezinha. Uma bomba foi jogada na nossa cela. Voltei em janeiro de 72 para Juiz de Fora (nunca me levaram para BH). Quando voltei para o julgamento, me colocaram numa cela, na 4ª Cia. de Polícia do Exército, 4ª Região Militar, lá apareceu outra vez o Dops que me interrogava. Mas foi um interrogatório bem mais leve. Fiquei esperando o julgamento lá dentro.”

Frio de cão
“Um dia, a gente estava nessa cela, sem vidro. Um frio de cão. Eis que entra uma bomba de gás lacrimogênio, pois estavam treinando lá fora. Eu e Terezinha ficamos queimadas nas mucosas e fomos para o hospital. Tive o
‘prazer’ de conhecer o comandante general Sílvio Frota, que posteriormente me colocaria na lista dos infiltrados no poder público, me levando a perder o emprego.”

Motivos

“Quando eu tinha hemorragia, na primeira vez foi na Oban (…) foi uma hemorragia de útero. Me deram uma injeção e disseram para não bater naquele dia. Em Minas, quando comecei a ter hemorragia, chamaram alguém que me deu comprimido e depois injeção. Mas me davam choque elétrico e depois paravam. Acho que tem registros disso no final da minha prisão, pois fiz um tratamento no Hospital das Clínicas.”

Morte e solidão
“Fiquei presa três anos. O estresse é feroz, inimaginável. Descobri, pela primeira vez, que estava sozinha. Encarei a morte e a solidão. Lembro-me do medo quando minha pele tremeu. Tem um lado que marca a gente o resto da vida.”

Marcas da tortura

“As marcas da tortura sou eu. Fazem parte de mim.”

segunda-feira, 18 de junho de 2012

Rede Globo é obrigada a contratar 150



15/06/2012 | 16:33

 
Até fevereiro do ano que vem, a Rede Globo, no Rio de Janeiro, está obrigada a contratar 150 jornalistas e radialistas para suas redações. Isso, junto a uma multa de R$ 1 milhão, é o resultado de um acordo firmado entre a empresa e o Ministério Público (MP) no fim de 2011, depois de uma investigação que identificou diversas irregularidades trabalhistas no maior veículo de comunicação do País.

Confira aqui o processo sobre a Globo.

Aqui, o acordo entre o MP e a empresa.

A Procuradoria do Trabalho da 1ª Região, após solicitar à Globo cópia do controle de frequência de empregados, encontrou casos de funcionários com expediente de mais de 19 horas e desrespeito ao intervalo mínimo entre expedientes (11 horas) e não concessão do repouso semanal remunerado. “Foi constatado excesso de jornada e que este excesso é habitual, e não extraordinário”, explica a procuradora Carina Bicalho, do Núcleo de Combate às Fraudes Trabalhistas.

Nos últimos cinco anos, esta foi a terceira vez que a emissora do Jardim Botânico teve constatadas irregularidades quanto a jornadas de trabalho. Com este acordo na Justiça, a Globo promove nos últimos meses a prática de novas escalas, garantindo folgas aos jornalistas e mais respeito aos intervalos interjornadas. Este ajuste de conduta chegou também no Infoglobo, que edita os impressos da família Marinho.

“O acordo feito com a empresa foi para o futuro, para que ela deixe de cometer estas práticas, com uma solução — a contratação de pessoal”, resume a procuradora. O acordo foi assinado em 12 de dezembro de 2011, com aditamento no dia 15 do mesmo mês, e homologado em fevereiro deste ano. A vitória do Ministério Público do Trabalho sobre a Rede Globo garante não só o descanso mínimo exigido pela lei a jornalistas que trabalham na empresa como também a abertura de novos postos de trabalho.

A própria Globo é quem decide sobre a cota de jornalistas e de radialistas entre os 150 funcionários – setenta deles devem ser contratados até agosto, segundo o acordo firmado. O Sindicato dos Jornalistas entrou em contato com a diretoria de Relações Trabalhistas da emissora, mas as questões não foram respondidas nem por telefone, nem por e-mail.

Na Procuradoria, há ainda ações sobre outros veículos do Rio de Janeiro. Record, SBT e Bandeirantes, por exemplo, estão na mira da Procuradoria. Na denúncia, a prática de contratação de jornalistas por meio de pessoa jurídica (PJ). Esta irregularidade, imposta pelas empresas aos profissionais, foi constantemente criticada pelo Sindicatato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro nos últimos anos.

Na Record, por exemplo, denúncias dão conta de que metade da redação da emissora na cidade é de PJs. A empresa, no entanto, diz que são apenas os salários mais altos – o que para o Ministério Público não faz a menor diferença.

“PJ é uma forma que o capital descobriu para trazer o trabalhador para o lado dele, dizendo que o empregado está ganhando com isso”, expõe a procuradora. No entendimento dela, quando essa prática ocorre com os altos salários, não há distribuição de riqueza, já que tanto a empresa quanto o profissional deixam de recolher impostos. E, assim, ainda segundo Carina Bicalho, se reforça a máxima de que, no Brasil, quem acaba pagando tributos mesmo é a classe média.

Com lógica semelhante, investigações também são feitas sobre assessorias de comunicação cariocas que “simulam a condição de sócio” ao contratar jornalistas, em vez de utilizar a CLT.

Confira aqui, entrevista com a procuradora Carina Bicalho e nota do Sindicato dos Jornalistas do Município do Rio de Janeiro sobre a questão.

Fonte: site do SJPMRJ. Texto publicado originalmente na edição de número 34 do Lidão, do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Município do Rio de Janeiro.



Publicado em: http://www.fenaj.org.br

Leonardo Boff: “Carta da Terra é indigesta pelo mundo capitalista e exige mudanças que mostram a realidade que queremos”

Natasha Pitts
Jornalista da Adital
Adital
Natasha PittsNa tarde desta sexta-feira (15), os olhares da Cúpula dos Povos se voltaram para o Lançamento da Rede Brasileira da Carta da Terra. A atividade teve a participação do teólogo e escritor Leonardo Boff, de Miriam Vilela, integrante da Carta da Terra Internacional, de Maria Alice Setubal, do Instituto Democracia e Sustentabilidade (IDS) e de Ana Rúbia, da Associação Brasileira dos Membros do Ministério Público de Meio Ambiente (Abrampa). A Rede, até o momento, está formada por 30 organizações que buscam chamar atenção à importância da Carta da Terra para a sustentabilidade. A iniciativa tem como principal intuito organizar a sociedade civil para demandar que os princípios presentes na Carta sejam inseridos na legislação brasileira e nas políticas públicas.
Ana Rúbia conversou com os\as participantes sobre temas como as dificuldades para se implementar as legislações internacionais e como prova citou a Agenda 21, que por ser vinculante já deveria ter sido implementada pelos Estados, o que não aconteceu. Rúbia também focou na necessidade de se propor uma agenda positiva.
Já Maria Alice chamou os presentes a pensarem em si como cidadãos planetários, "que precisam superar juntos os problemas, e aprender a respeitar e a cuidar de si e do planeta” para que algo comece a mudar verdadeiramente no mundo.
A fala mais esperada da tarde foi a de Leonardo Boff, que arrancou aplausos de começo ao fim de sua intervenção sobre a importância da Carta da Terra. Logo em suas primeiras palavras o teólogo deixou claro por qual motivo este importante documento, com mais de dez anos, não é divulgado amplamente.
"A Carta da Terra não é divulgada porque não é digerível, ela é indigesta pelo mundo capitalista e exige mudanças que mostram a realidade que queremos. E nós temos que ir em busca dessa mudança, pois o futuro que preparam para nós na Rio+20 é nos colocar na beira do abismo”, manifestou.
O teólogo considera que a Carta da Terra é o documento que verdadeiramente marca o início do século XXI e mesmo tendo dez anos, ela continua importante para o momento que a humanidade vive hoje.
Boff também chamou a defender a Carta, pois ela é fruto de uma grande consulta, e "nasceu do grito da Terra, de baixo, dos quilombolas, negros, indígenas, universitários, do povo, e parece que tem algo do Espírito Santo nela”.
Lembrou ainda que no dia 22 de abril de 2009, a Organização das Nações Unidas aprovou as reivindicações de que a Terra fosse chamada de Mãe Terra, "pois terra a gente vende, troca, usa, mas mãe não, mãe a gente cuida e respeita”.
Para tomarmos como exemplo, Boff citou Itaipu como empresa que respeita, reconhece e defende a Carta da Terra, cuida da natureza, respeita a sustentabilidade e propõe um novo tipo de relacionamento com a natureza.
Encerrando sua intervenção, o teólogo defendeu a Carta da Terra como uma nova forma de reencantamento do mundo - onde se está vivendo tamanha desolação – e como uma ferramenta poderosa que mostra que ainda vale a pena viver.
A atividade foi realizada, entre outros, pela Associação Civil Terrazul.
Conheça a Carta da Terra: http://www.cartadaterrabrasil.org

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Regulamenta, Dilma!

Nos últimos meses, apesar da omissão deliberada e da satanização liberista que a grande mídia ainda faz do tema, é inegável que existe uma crescente mobilização de partidos políticos e da sociedade civil organizada em torno da necessidade da regulação das comunicações.

(*) Publicado originalmente na revista Teoria e Debate.

Regulamentar é o mesmo que regular, verbo de origem latina que significa estabelecer regras para; estabelecer ordem; acertar, ajustar. Um dos papéis fundamentais do Estado é exatamente “estabelecer regras” – políticas públicas – relativas aos diferentes setores de atividade existentes numa sociedade para servir ao interesse coletivo.

Nas últimas décadas, atores sociais poderosos conseguiram tornar preponderante, em todo o planeta, a perspectiva política que postula limites estritos ao papel regulador do Estado. É o chamado “Estado mínimo” do ideário neoliberal. Os resultados desastrosos dessa política tornaram-se evidentes, a partir de 2008, com a crise global dos mercados financeiros. E suas consequências seguem fazendo estragos enormes ao redor do mundo.

É interessante notar, todavia, que, mesmo numa época em que dominou a perspectiva neoliberal, uma atividade foi e continua sendo objeto da regulação do Estado: as comunicações, reunindo os antigos setores de telecomunicações e radiodifusão e o novo espaço das TICs, as tecnologias de informação e comunicação.

Não só em vizinhos nossos como a Argentina, a Bolívia, o Equador, a Venezuela e o Uruguai, mas também na Inglaterra ocorre intenso debate sobre regulação e autorregulação – exemplos eloquentes por si mesmos.

São muitas as razões que justificam o imperioso papel regulador do Estado nas comunicações. A mais evidente (certamente) é a revolução digital pela qual passa o setor, que dissolveu as fronteiras entre as telecomunicações (telefonia, transmissão de imagens e dados), a comunicação social (rádio, televisão) e as TICs. Esse tsunami tecnológico provoca enormes ressonâncias no conjunto da sociedade, desde a transformação radical dos modelos de negócio até a reinvenção da sociabilidade humana, que agora se espraia viroticamente pelas redes sociais.

Uma razão talvez menos evidente ao senso comum, todavia, é a centralidade cada vez maior das comunicações nas democracias contemporâneas. A universalização da liberdade de expressão adquire um caráter fundante para a construção da cidadania ativa e republicana.

No Brasil, mesmo atores historicamente resistentes a qualquer alteração no status quo do setor de comunicações dão sinais públicos de finalmente reconhecer que algum tipo de regulação do Estado torna-se inevitável e inadiável.

De fato.

Para ficar apenas nos exemplos mais eloquentes: a principal referência legal para a radiodifusão, o Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/1962) completa cinquenta anos (!) no próximo mês de agosto. A Lei Geral de Telecomunicações (nº 9.472/1997), apesar de relativamente recente, entre outras questões já nasceu defasada por separar telecomunicações e radiodifusão. E as normas e princípios da Constituição de 1988 – que, pela primeira vez, trouxe um capítulo específico sobre a Comunicação Social – em sua maioria não foram regulamentados, e portanto não são cumpridos. Pior ainda, o artigo 224 que institui o Conselho de Comunicação Social, apesar de regulamentado, vem sendo descumprido pelo Congresso Nacional desde dezembro de 2006.

Mas não se trata apenas de uma questão legal. Regulamentar as comunicações implica o Estado cumprir seu papel de garantir a universalização da liberdade de expressão, assegurar maior diversidade e pluralidade de vozes no debate público e possibilitar a construção cidadã de uma opinião pública republicana e democrática.

A realização da 1ª Conferência Nacional de Comunicação em dezembro de 2009, apesar de boicotada por parte dos empresários de comunicações, confirmou o tema da regulação na agenda pública. Nos últimos meses, apesar da omissão deliberada e da satanização liberista que a grande mídia ainda faz do tema, é inegável que existe uma crescente mobilização de partidos políticos e da sociedade civil organizada em torno da necessidade da regulação das comunicações.

Por tudo isso, pela consolidação de uma democracia republicana, e em nome da maioria esmagadora do apoio popular que seu mandato tem recebido: regulamenta, Dilma!

Venício A. de Lima é jornalista, professor aposentado da UnB e autor de, entre outros livros, Política de Comunicações: um balanço dos Governos Lula (2003-2010). Editora Publisher Brasil, 2012.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Desenvolvimento e subdesenvolvimento no mundo pós-neoliberal


Marcio Pochmann

Na segunda metade do século XVIII, o aparecimento da primeira Revolução Industrial deu início à transição da sociedade agrária. As bases da nova sociedade urbano-industrial impuseram significativos ganhos de produtividade no trabalho, decorrentes da emergência do novo padrão de produção e do consumo associado ao uso intensivo de carbono. Com isso, a expansão da base material da economia foi tornando possível elevar o padrão de bem-estar social por meio de grandes lutas sociais e políticas, como no caso de modalidades emancipatórias na condição de trabalho pela sobrevivência. Diante da elevação da expectativa média de vida para mais de 50 anos de idade, houve importante redução da carga horária de trabalho dos segmentos sociais ativos e proteção aos riscos do trabalho penoso.

Por meio da captura de parte do excedente econômico gerado pela sociedade urbano-industrial, responsável pela expansão do fundo público, tornou-se possível viabilizar o financiamento da inatividade de crianças, adolescentes e idosos por meio de uma garantia generalizada de serviços (saúde, transporte e educação públicos), bens (alimentação, saneamento e moradia) e rendas (bolsas e subsídios). Uma vez concluída a formação para o trabalho (até os 15 anos de idade), tinha início o exercício do trabalho durante 30 a 35 anos, com contribuição ao fundo público capaz de permitir a imediata passagem para a inatividade (sistema de aposentadoria e pensão que legava viver sem mais depender do mercado de trabalho). Isso se tornou mais evidente desde o final do século XIX, com o avanço da Segunda Revolução Tecnológica, que, simult aneamente à ocorrência da Depressão entre 1873 e 1896, abriu lugar à nova disputa entre nações emergentes pela sucessão da liderança inglesa. Alemanha e Estados Unidos despontaram com o protagonismo da industrialização retardatária, com ganhos de produtividade superiores a todos os demais países. A solução final, todavia, ocorreu mais tarde, após a realização de duas grandes guerras mundiais, em que a Alemanha foi derrotada sucessivamente.

No contexto da Guerra Fria (1947–1991), mesmo com a presença da União Soviética, os Estados Unidos estabeleceram seu modo de vida (american way of life) como forma de dominação global. Mas a crise da produção em 1973 logo passou a apontar os limites do americanismo, concomitantemente ao impulso emergente das economias da Alemanha e do Japão. A contrareforma neoliberal do final da década de 1970 permitiu aos EUA retomar com mais força sua hegemonia por meio do reposicionamento do Japão à condição secundária (longa estagnação na década de 1990), da reacomodação da Alemanha no quadro das exigências de sua reunificação e consolidação da União Europeia e, ainda, do estrangulamento das experiências de socialismo real (desarticulação da União Soviética).
A condução da política neoliberal estadunidense pós-crise de regulação da década de 1970 se mostrou suficiente para se antepor ao fervor japonês e alemão, bem como levar à exaustão a experiência de socialismo soviético. Esse êxito, contudo, foi portador da corrosão das bases produtivas do capitalismo norte-americano, o que fez repetir, guardadas as proporções, a trajetória inglesa do final do século XIX, de contaminação pelo vírus da improdutividade da financeirização da riqueza. Paralelamente, parte da Ásia confirmou, por intermédio de experiências nacionais, a constituição de uma nova fronteira de expansão, as novas fontes de dinamismo do capitalismo global. Justamente China e Índia, que foram, em especial, os dois grandes territórios do planeta que perderam em função do avanço da hegemonia inglesa e estadunidense n a primeira e segunda Revolução Industrial e Tecnológica, voltaram a se tornar emergentes diante da implantação de experiências associadas ao planejamento central e vigor do Estado. Reformas realizadas desde a década de 1980 foram tornando esses países referências à expansão capitalista, com crescente deslocamento da produção industrial ocidental para a Ásia, concomitantemente ao avanço da Terceira Revolução Industrial e Tecnológica.

Por outro lado, a América Latina, África e parcela dos países da Europa Oriental foram os maiores perdedores durante quase três décadas de hegemonia das políticas neoliberais. A despeito disso, o Brasil, só mais recentemente, ressurgiu como alternativa em disputa na recuperação econômica para além do centro capitalista mundial. No contexto da sucessão de crises econômicas e financeiras mundiais após 1973, alguns poucos países fora do eixo das economias desenvolvidas apresentaram-se em condições de liderar um novo ciclo de expansão produtiva. Essa possibilidade histórica encontra-se aberta ao mundo diante do curso da transição da sociedade urbano-industrial. Na sociedade pós-industrial em construção, o conhecimento pode se tornar um dos principais ativos da propulsão do desenvolvimento, cujo avanço da produtividade perten ce ao comando do processo de desmaterialização das economias. Sob estas condições, depositam-se as possibilidades adicionais da maior libertação do homem do trabalho pela sobrevivência, por meio da postergação do ingresso no mercado de trabalho para depois do cumprimento do ensino superior e da oferta educacional ao longo da vida.

O excesso da produção, não mais a escassez, parece expressar a sociedade ancorada no trabalho imaterial e no conhecimento, o que possibilita gestar um novo padrão de produção e consumo que não mais protagoniza a degradação ambiental. A sustentação do meio ambiente ganha importância com a necessidade de mudança do atual modelo de produção e consumo, estimulado pelo processo maior de desmaterialização das economias modernas. Nada, contudo, está definido. Há tendências que podem ser confirmadas à medida que os sujeitos históricos apresentam-se capazes de construir seus próprios caminhos, orientados pela consolidação da liderança econômica, social e ambiental no atual cenário mundial pós-neoliberal em disputa.
 
Este artigo é parte integrante da edição 109 da revista Fórum.