quinta-feira, 17 de novembro de 2016

O Dia Nacional de Greve e o padrão invisível de jornalismo


Escrito por: Pedro Rafael Vilela
Fonte: Carta Capital 

Não é a primeira vez, nem será a última, mas não deixa de ser simbólica a (não) cobertura da mídia brasileira sobre os protestos e paralisações de diversas categorias profissionais ocorridos em mais de 21 estados e no Distrito Federal, na última sexta-feira (11), no Dia Nacional de Greve.
 
Os atos, organizados por movimentos sociais e pelas principais centrais sindicais do País, contaram com a participação de dezenas de milhares de trabalhadores e trabalhadoras, além de estudantes, que interromperam suas atividades em setores como transporte público, limpeza urbana, bancos, escolas e indústria, e foram às ruas das maiores cidades brasileiras para protestar contra a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) nº 55, em tramitação no Senado.
 
Se aprovada, essa PEC vai impor um congelamento nos gastos públicos, como saúde, educação, cultura e saneamento básico pelos próximos 20 anos, uma tragédia em termos de direitos sociais sem precedentes na história do Brasil.
 
Uma mudança constitucional tão drástica, num país que tivesse um sistema de comunicação plural e diverso, deveria gerar, para dizer o mínimo, um intenso debate na sociedade, com participação maciça da própria mídia na visibilidade e no esclarecimento das reais implicações da medida. Não é o que ocorre no Brasil.
 
A irrealidade da mídia 
 
Em um de seus ensaios mais célebres, o jornalista e sociólogo Perseu Abramo descreveu com acuidade as múltiplas formas de manipulação da informação por parte da imprensa. Ao distinguir os quatro padrões básicos de distorção da realidade praticados pela mídia, Abramo chama a atenção para o padrão de ocultação, um dos mais recorrentes.
 
Em suas próprias palavras, “é o padrão que se refere à ausência e à presença dos fatos reais na produção da imprensa. Não se trata, evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre os fatos da realidade”. 
 
Um outro padrão concebido por Perseu Abramo, o da fragmentação, tem a ver com a forma como a mídia, ao noticiar um fato, decompõe a totalidade desse fato, operando um processo de seleção de alguns aspectos, em detrimento de outros.
 
É o que ocorre, por exemplo, quando a ênfase das matérias trata apenas das consequências dos bloqueios no trânsito e fechamento de rodovias, como que opondo os objetivos dos manifestantes ao do conjunto da população. Ao mesmo tempo que ressalta esse aspecto, silencia sobre as motivações das paralisações e se recusa até mesmo a dar voz aos envolvidos nas mobilizações para dialoguem com a sociedade. Trata-se de uma inversão rasteira dos fatos e da própria realidade, mas que é absolutamente corriqueira na cobertura da mídia.
 
Basicamente, esses dois padrões de manipulação, facilmente verificáveis, deram a tônica do noticiário na (não) repercussão das manifestações e paralisações no Dia Nacional de Greve.
 
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) acompanhou com atenção a cobertura das principais redes de televisão, jornais e portais de notícias ao longo da sexta-feira e no dia seguinte. O resultado? Um tapa na cara da democracia e um descompromisso brutal com o direito à comunicação e informação da população brasileira.
 

Televisão: a gente não se vê por aqui

 
Protesto no Rio de Janeiro
 
As principais emissoras de televisão aberta parecem ter disputado entre si o título de quem mais ignorou as expressivas mobilizações do Dia Nacional de Greve. O Jornal Nacional, da Globo, noticiário de maior audiência na tevê brasileira, decidiu simplesmente não exibir um segundo sequer dos atos que paralisaram algumas das maiores cidades do país, apostando forte na estratégia da ocultação.
 
Na opinião de Perseu Abramo, em seu ensaio sobre manipulação da grande imprensa, a mídia é mais perversa por aquilo que ela não veicula do que por aquilo que leva ao ar. É como se ela definisse os fatos sociais que merecem ser considerados fatos jornalísticos ou não.
 
“Todos os fatos, toda realidade pode ser jornalística, e o que vai tornar jornalístico um fato independe de suas características reais intrínsecas, mas depende, sim, das características do órgão de imprensa, de sua visão de mundo, de sua linha editorial”. 
 
A Globo News, canal de notícias das Organizações Globo na televisão por assinatura, que, durante as manifestações pró-impeachment de Dilma Rousseff dedicava praticamente a totalidade de sua programação aos protestos, dessa vez apenas cumpriu um lamentável protocolo de cobrir com distanciamento e até desprezo os atos do Dia Nacional de Greve.
 
Exibindo notas curtas e panorâmicas ao longo de sua programação, sem sequer ouvir os porta-vozes dos atos, a emissora deu ênfase justamente às interrupções no trânsito e paralisação dos transportes públicos em cidades como São Paulo e Brasília.
 
No programa Estúdio I, que se define pela característica de noticiário com análise, e vai ao ar de segunda à sexta, às 14h, a cobertura dos protestos seguiu a lógica de relatar superficialmente os acontecimentos. No momento de analisar a notícia, os participantes do programa praticamente ignoraram as causas do protesto e logo mudaram de assunto.
 
Para se ter uma ideia, o programa dedicou mais tempo à matéria sobre o site de dicas econômicas de moda da filha do Donald Trump do que à repercussão da greve nacional, incluindo aí os comentários de estúdio.
 
No Jornal da Record, uma nota de 37 segundos, lida pelo apresentador, apenas mencionou protestos de estudantes e servidores do Rio de Janeiro contra atrasos nos salários por parte do governo estadual, com ênfase na repressão da Polícia Militar.
 
O Jornal da Band, levado ao ar na noite da sexta-feira (11), como que reconhecendo a dificuldade em ignorar as manifestações, optou por um caminho misto, entre a ocultação e a distorção com doses generosas de criminalização da manifestação política e do próprio direito de greve.
 
Na matéria de um minuto e 10 segundos, o telejornal enfocou imagens das manifestações pela ótica da paralisação do transporte público e bloqueio de ruas e rodovias, ressaltando a ideia de que os protestos “atrapalharam muita gente”. Os dois únicos entrevistados foram pessoas que criticaram as interrupções no trânsito, e não houve qualquer menção mais clara sobre os motivos do protesto.
 
Já o SBT Brasil, dentre os principais telejornais, foi o que exibiu a matéria mais equilibrada. Com 4min27 de duração, a reportagem seguiu a ênfase de relatar criticamente os bloqueios e paralisações de rodovias na primeira parte da matéria, mas foi a única a dar voz para lideranças dos movimentos (Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares e Rodrigo Rodrigues, secretário-geral da CUT Brasília).
 
Destacou passeatas e protestos de estudantes e professores no Rio Grande Sul, que resultaram em forte repressão da Brigada Militar. Bom lembrar que diversas categorias de servidores estaduais do RS sofrem com salários atrasados há meses. A própria Brigada Militar, que reprimiu os protestos, corre o risco de nem sequer receber o 13º salário em decorrência da política de austeridade do governo Ivo Sartori (PMDB-RS), que tem penalizado principalmente os serviços públicos no estado.
 
Ocultação nos jornais
 
Os três maiores jornais impressos do País, em suas edições publicadas no sábado (12), decidiram deliberadamente ignorar os atos ocorridos no dia anterior. Até mesmo a Folha de S. Paulo, que se vende como veículo aberto ao debate e que busca exibir diversos pontos de vista políticos diferentes, não dedicou uma linha sequer ao assunto.
 
No jornal O Globo, da família Marinho, idem. O Estadão, tido como o mais conservador entre os três, publicou uma nota pequena, na página interna B3, de economia, com cerca de 10 linhas, praticamente um registro dos protestos, e não uma cobertura.
 
Nos portais de notícias UOL e G1, foram publicadas matérias sobre os protestos, repetindo a fórmula panorâmica de descrição dos atos a partir do ângulo das interrupções no transporte e paralisação das rodovias. Nenhuma dessas matérias ganhou destaque na página principal desses portais. Para encontrá-las, os interessados teriam que buscar principalmente na página de últimas notícias ou no buscador do próprio site, o que diminui muito o potencial de audiência dessas notícias.
 
Censura privada na TV pública
 
Se o comportamento dos veículos privados de comunicação não chega a surpreender, foi lamentável constatar que as mesmas fórmulas de ocultação e cobertura superficial se aplicaram também à matéria exibida pela TV Brasil, emissora da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no seu principal telejornal, o Repórter Brasil, na noite de sexta-feira. Em menos de dois minutos, a “reportagem” exibiu trechos dos protestos e paralisações em diversos estados.
 
Novamente, destaque para os bloqueios de rodovias e paralisações no transporte público e nas escolas. Nenhum porta-voz dos trabalhadores foi ouvido para contextualizar o significado daqueles atos. Oferecer mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional, como preconiza a lei de criação da EBC, mandou lembranças dessa vez.
 
Esse episódio não parece estar desconectado da grave intervenção promovida por Michel Temer sobre a EBC, que praticamente eliminou as garantias de autonomia e independência de sua programação frente ao governo, ao extinguir principalmente o Conselho Curador e os mandatos do diretor-presidente e do diretor-geral.
 
O contraponto
 
Coube aos meios de comunicação alternativos oferecer uma cobertura decente e proporcional ao tamanho das paralisações e mobilizações da última sexta-feira. Apenas para ficar em um dos exemplos mais expressivos, a Mídia Ninja utilizou seus canais nas redes sociais para distribuir, ao longo de toda a sexta-feira, um rico conteúdo das manifestações, que incluía, principalmente, vídeos e fotos, com registro de paralisações em mais de 20 cidades, incluindo diferentes categorias: metroviários, rodoviários, professores, estudantes, trabalhadores da limpeza urbana, e muito mais.
 
Vale destacar que, ao contrário da cobertura televisiva, onde as filmagens se deram com distanciamento, partir do topo de edifícios ou do alto dos helicópteros, a cobertura da Mídia Ninja se dá diretamente das manifestações, abrindo espaço para falas dos trabalhadores e capturando uma dimensão mais orgânica do significado desses atos. O portal Brasil de Fato também publicou dezenas de matérias e postagens destacando a abrangência das paralisações em todo o país.
 
Esse contraponto só reforça uma conclusão inevitável: a grande imprensa só não cobriu o Dia Nacional de Greve porque não quis. Ou melhor, porque tratou-se de uma deliberada decisão editorial de ignorá-lo e, com isso, alienar ainda mais o conjunto da sociedade sobre o debate do presente e do futuro do país.
 
Não há democracia sem mídia democrática. E, sem democracia, não se constrói um país justo. Re-existir sempre, calar jamais!
 
 
*Pedro Rafael é jornalista, mestre em comunicação pela Universidade de Brasília (UnB) e secretário-executivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC). Colaboraram Bia Barbosa e Renata Mielli
 
 
 
 

terça-feira, 8 de novembro de 2016

Silvio Tendler e o debate sobre o futuro do Brasil




O filme de Silvio Tendler ilumina e esclarece a lógica da política em tempos marcados pelo crescente desmonte do Estado brasileiro. A visão do Estado mínimo; a venda de ativos públicos ao setor privado; o ônus decorrente das políticas de desestatização traduzidos em fatos e imagens que emocionam e se constituem em uma verdadeira aula sobre a história recente do Brasil. Assim é Privatizações: a Distopia do Capital. Realização do Sindicato dos Engenheiros no Estado do Rio de Janeiro (Senge-RJ) e da Federação Interestadual de Sindicatos de Engenheiros (Fisenge), com o apoio da CUT Nacional, o filme traz a assinatura da produtora Caliban e a força da filmografia de um dos mais respeitados nomes do cinema brasileiro.

Em 56 minutos de projeção, intelectuais, políticos, técnicos e educadores traçam, desde a era Vargas, o percurso de sentimentos e momentos dramáticos da vida nacional. A perspectiva da produtora e dos realizadores é promover o debate em todas as regiões do país como forma de avançar “na construção da consciência política e denunciar as verdades que se escondem por trás dos discursos hegemônicos”, afirma Silvio Tendler.

Vale registrar, ainda, o fato dos patrocinadores deste trabalho, fruto de ampla pesquisa, serem as entidades de classe dos engenheiros. Movido pelo permanente combate à perda da soberania em espaços estratégicos da economia, o movimento sindical tem a clareza de que “o processo de privatizações da década de 90 é a negação das premissas do projeto de desenvolvimento que sempre defendemos”.

► Ouça entrevista completa com Silvio Tendler: http://bit.ly/1swKvgW
► Conheça o canal Caliban Cinema e Conteúdo: http://bit.ly/1oeINSR

segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Josué de Castro - Cidadão do Mundo


O filme retrata a vida e a obra do médico pernambucano Josué de Castro, intelectual engajado em um dos maiores e eternos problemas da humanidade: a fome. Autor de vários livros que discutem a fome como uma questão política, Josué representou o Brasil em vários órgãos internacionais, como a FAO, mas acabou sendo exilado pela ditadura militar

50 min - Documentário
Direção: Silvio Tendler
Roteiro: Adolfo Lachtermacher, Josué de Castro Filho
Elenco:
Francisco Milani (Narrador (voz))
José Wilker (Narrador (voz))
Produtores: Adolfo Lachtermacher
Países de Origem: Brasil
Estreia Mundial: 1994

 "Josué é uma das pessoas que eu mais admirei. Eu digo mesmo que Josué é o homem mais inteligente e mais brilhante que eu conheci." "... o diabo é que me dava uma inveja enorme - Josué era brilhante em todas as línguas... Incrível!" "... mas isso do intelectual mais eminente do país, a figura mais importante do território brasileiro, a mais visível... esse, ser levado à morte em tristeza, querendo vir..."
DARCY RIBEIRO

 "Ele era apenas um brasileiro - um grande brasileiro. Um cientista, um escritor, um homem público, devotado à sua pátria, ao seu povo..." "...Sabia da injustiça, das nossas mazelas, sabia da fome... e como sabia da fome!"
JORGE AMADO

"Um dos traços fundamentais de Josué de Castro era a sua clarividência. A clarividência é uma virtude que se adquire pela intuição, mas sobretudo pelo estudo. É tentar ver a parte do presente que se projeta no futuro."
MILTON SANTOS
Geógrafo

Os golpes hoje são mais sofisticados

A questão não é corrupção. A guerra é global e muito pesada; é uma questão de soberania


Por José Luiz Quadros de Magalhães

Para o poder econômico, e outros poderes que o sustentam, o importante não é viver em uma democracia, mas fazer com que as pessoas inocentemente acreditem viver em uma. O mesmo vale para o Estado constitucional. O que vemos acontecer de forma grave e agressiva é um teatro, no qual a forma oculta o conteúdo. Julgamentos, processos, becas, carros de polícia e ternos e gravatas, parlamentares, jornais, televisão… são um aparato tragicômico para justificar o desrespeito à vontade popular e o desmonte de um projeto de transformação social.
Parece que não há mais espaço para os “golpes de Estado” como na década de 1960 e 1970. Tanques de guerra nas ruas, prisões sem mandado judicial, torturas escancaradas, parecem não agradar a maioria da opinião pública do mundo. Os golpes hoje são mais sofisticados. Lembremos que a ditadura empresarial/militar a partir de 1964 preocupou-se com uma representação teatral da ditadura com a existência de dois partidos políticos, assim como fizeram, inclusive, uma Constituição (autoritária e ilegítima) para reforçar o teatro da “democracia” e “Estado de direito”.
Aquele teatro mal feito foi aperfeiçoado. A mídia foi tomada e perdeu qualquer pudor quanto a manipulação, distorção e encobrimento de fatos. Existe mais tecnologia para encantar as pessoas e o teatro do absurdo é permanente.
O golpe em curso no Brasil conta com juízes que agem contra a Constituição, extrapolando sua função constitucional, investigando, punindo, agindo como polícia política; promotores e delegados vinculados a partidos políticos (como no Paraná e São Paulo) que agem ao estilo dos piores regimes totalitários; e uma mídia que não informa mas faz campanha aberta contra pessoas, partidos, ideias e instituições.
Este aparato foi cuidadosamente criado para manter privilégios e para servir interesses econômicos poderosos. A questão não é corrupção. Claro que não. A guerra é global e muito pesada. A questão passa pela entrega de nossas riquezas. A questão é abaixar mais uma vez a nossa cabeça diante do império do norte. A questão é manter a colonialidade presente em nosso ser, nossa subordinação ao Europeu e aos EUA. Toda vez que o Brasil levantou sua cabeça e exerceu sua soberania, o Império nos colocou para baixo, destruiu nossas lideranças, e continuou saqueando nossas riquezas. A história se repete com incrível semelhança: Getúlio Vargas, João Goulart, Lula.
O mais incrível é a capacidade de levar as pessoas e as Forças Armadas, acreditarem que a parceria com os Estados Unidos, que entregar o nosso Petróleo, nosso minério, nossas montanhas, nossa riqueza, pode ser algo a favor do Brasil. Como que entregar o pré-sal e destruir uma grande empresa nacional pode ser algo a favor do Brasil? Estamos vivendo, além de um golpe, uma invasão do país. O projeto é destruir toda possibilidade de soberania. As pessoas e instituições encarregadas de proteção da soberania precisam atuar.
Em meio a tudo isto, um grupo de pessoas, perdidas em meio à guerra ideológica são levadas a ir às ruas contra o Brasil, e os nossos interesses, empurrados pela desinformação generalizada, a confusão e o ódio de classe incentivado permanentemente. Triste, perigoso e interessante é a contaminação das Polícias, que vindo do povo se volta contra este e contra o país. Interessante como que brasileiros, que se dizem patriotas, pedem a intervenção militar contra o Brasil.
As Forças Armadas têm a função constitucional de preservar a soberania. Jamais poderia intervir para destruir a soberania como querem alguns poucos desinformados. Estamos sob ataque estrangeiro: a guerra é ideológica e econômica, e o grande inimigo é a desinformação. A solução é mais democracia, participação, informação e mobilização, urgente.
José Luiz Quadros de Magalhães é professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).