Fonte: Carta Capital
Não é a primeira vez, nem será a última, mas não deixa de ser simbólica
a (não) cobertura da mídia brasileira sobre os protestos e paralisações
de diversas categorias profissionais ocorridos em mais de 21 estados e
no Distrito Federal, na última sexta-feira (11), no Dia Nacional de
Greve.
Os atos, organizados por movimentos sociais e pelas principais centrais
sindicais do País, contaram com a participação de dezenas de milhares
de trabalhadores e trabalhadoras, além de estudantes, que interromperam
suas atividades em setores como transporte público, limpeza urbana,
bancos, escolas e indústria, e foram às ruas das maiores cidades
brasileiras para protestar contra a Proposta de Emenda Constitucional
(PEC) nº 55, em tramitação no Senado.
Se aprovada, essa PEC vai impor um congelamento nos gastos públicos,
como saúde, educação, cultura e saneamento básico pelos próximos 20
anos, uma tragédia em termos de direitos sociais sem precedentes na
história do Brasil.
Uma mudança constitucional tão drástica, num país que tivesse um
sistema de comunicação plural e diverso, deveria gerar, para dizer o
mínimo, um intenso debate na sociedade, com participação maciça da
própria mídia na visibilidade e no esclarecimento das reais implicações
da medida. Não é o que ocorre no Brasil.
A irrealidade da mídia
Em um de seus ensaios mais célebres, o jornalista e sociólogo Perseu
Abramo descreveu com acuidade as múltiplas formas de manipulação da
informação por parte da imprensa. Ao distinguir os quatro padrões
básicos de distorção da realidade praticados pela mídia, Abramo chama a
atenção para o padrão de ocultação, um dos mais recorrentes.
Em suas próprias palavras, “é o padrão que se refere à ausência e à
presença dos fatos reais na produção da imprensa. Não se trata,
evidentemente, de fruto do desconhecimento, e nem mesmo de mera omissão
diante do real. É, ao contrário, um deliberado silêncio militante sobre
os fatos da realidade”.
Um outro padrão concebido por Perseu Abramo, o da fragmentação, tem a
ver com a forma como a mídia, ao noticiar um fato, decompõe a totalidade
desse fato, operando um processo de seleção de alguns aspectos, em
detrimento de outros.
É o que ocorre, por exemplo, quando a ênfase das matérias trata apenas
das consequências dos bloqueios no trânsito e fechamento de rodovias,
como que opondo os objetivos dos manifestantes ao do conjunto da
população. Ao mesmo tempo que ressalta esse aspecto, silencia sobre as
motivações das paralisações e se recusa até mesmo a dar voz aos
envolvidos nas mobilizações para dialoguem com a sociedade. Trata-se de
uma inversão rasteira dos fatos e da própria realidade, mas que é
absolutamente corriqueira na cobertura da mídia.
Basicamente, esses dois padrões de manipulação, facilmente
verificáveis, deram a tônica do noticiário na (não) repercussão das
manifestações e paralisações no Dia Nacional de Greve.
O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) acompanhou
com atenção a cobertura das principais redes de televisão, jornais e
portais de notícias ao longo da sexta-feira e no dia seguinte. O
resultado? Um tapa na cara da democracia e um descompromisso brutal com o
direito à comunicação e informação da população brasileira.
Televisão: a gente não se vê por aqui
Protesto no Rio de Janeiro
As principais emissoras de televisão aberta parecem ter disputado entre
si o título de quem mais ignorou as expressivas mobilizações do Dia
Nacional de Greve. O Jornal Nacional, da Globo, noticiário de maior
audiência na tevê brasileira, decidiu simplesmente não exibir um segundo
sequer dos atos que paralisaram algumas das maiores cidades do país,
apostando forte na estratégia da ocultação.
Na opinião de Perseu Abramo, em seu ensaio sobre manipulação da grande
imprensa, a mídia é mais perversa por aquilo que ela não veicula do que
por aquilo que leva ao ar. É como se ela definisse os fatos sociais que
merecem ser considerados fatos jornalísticos ou não.
“Todos os fatos, toda realidade pode ser jornalística, e o que vai
tornar jornalístico um fato independe de suas características reais
intrínsecas, mas depende, sim, das características do órgão de imprensa,
de sua visão de mundo, de sua linha editorial”.
A Globo News, canal de notícias das Organizações Globo na televisão por
assinatura, que, durante as manifestações pró-impeachment de Dilma
Rousseff dedicava praticamente a totalidade de sua programação aos
protestos, dessa vez apenas cumpriu um lamentável protocolo de cobrir
com distanciamento e até desprezo os atos do Dia Nacional de Greve.
Exibindo notas curtas e panorâmicas ao longo de sua programação, sem
sequer ouvir os porta-vozes dos atos, a emissora deu ênfase justamente
às interrupções no trânsito e paralisação dos transportes públicos em
cidades como São Paulo e Brasília.
No programa Estúdio I, que se define pela característica de noticiário
com análise, e vai ao ar de segunda à sexta, às 14h, a cobertura dos
protestos seguiu a lógica de relatar superficialmente os acontecimentos.
No momento de analisar a notícia, os participantes do programa
praticamente ignoraram as causas do protesto e logo mudaram de assunto.
Para se ter uma ideia, o programa dedicou mais tempo à matéria sobre o
site de dicas econômicas de moda da filha do Donald Trump do que à
repercussão da greve nacional, incluindo aí os comentários de estúdio.
No Jornal da Record, uma nota de 37 segundos, lida pelo apresentador,
apenas mencionou protestos de estudantes e servidores do Rio de Janeiro
contra atrasos nos salários por parte do governo estadual, com ênfase na
repressão da Polícia Militar.
O Jornal da Band, levado ao ar na noite da sexta-feira (11), como que
reconhecendo a dificuldade em ignorar as manifestações, optou por um
caminho misto, entre a ocultação e a distorção com doses generosas de
criminalização da manifestação política e do próprio direito de greve.
Na matéria de um minuto e 10 segundos, o telejornal enfocou imagens das
manifestações pela ótica da paralisação do transporte público e
bloqueio de ruas e rodovias, ressaltando a ideia de que os protestos
“atrapalharam muita gente”. Os dois únicos entrevistados foram pessoas
que criticaram as interrupções no trânsito, e não houve qualquer menção
mais clara sobre os motivos do protesto.
Já o SBT Brasil, dentre os principais telejornais, foi o que exibiu a
matéria mais equilibrada. Com 4min27 de duração, a reportagem seguiu a
ênfase de relatar criticamente os bloqueios e paralisações de rodovias
na primeira parte da matéria, mas foi a única a dar voz para lideranças
dos movimentos (Raimundo Bonfim, da Central de Movimentos Populares e
Rodrigo Rodrigues, secretário-geral da CUT Brasília).
Destacou passeatas e protestos de estudantes e professores no Rio
Grande Sul, que resultaram em forte repressão da Brigada Militar. Bom
lembrar que diversas categorias de servidores estaduais do RS sofrem com
salários atrasados há meses. A própria Brigada Militar, que reprimiu os
protestos, corre o risco de nem sequer receber o 13º salário em
decorrência da política de austeridade do governo Ivo Sartori (PMDB-RS),
que tem penalizado principalmente os serviços públicos no estado.
Ocultação nos jornais
Os três maiores jornais impressos do País, em suas edições publicadas
no sábado (12), decidiram deliberadamente ignorar os atos ocorridos no
dia anterior. Até mesmo a Folha de S. Paulo, que se vende como veículo
aberto ao debate e que busca exibir diversos pontos de vista políticos
diferentes, não dedicou uma linha sequer ao assunto.
No jornal O Globo, da família Marinho, idem. O Estadão, tido como o
mais conservador entre os três, publicou uma nota pequena, na página
interna B3, de economia, com cerca de 10 linhas, praticamente um
registro dos protestos, e não uma cobertura.
Nos portais de notícias UOL e G1, foram publicadas matérias sobre os
protestos, repetindo a fórmula panorâmica de descrição dos atos a partir
do ângulo das interrupções no transporte e paralisação das rodovias.
Nenhuma dessas matérias ganhou destaque na página principal desses
portais. Para encontrá-las, os interessados teriam que buscar
principalmente na página de últimas notícias ou no buscador do próprio
site, o que diminui muito o potencial de audiência dessas notícias.
Censura privada na TV pública
Se o comportamento dos veículos privados de comunicação não chega a
surpreender, foi lamentável constatar que as mesmas fórmulas de
ocultação e cobertura superficial se aplicaram também à matéria exibida
pela TV Brasil, emissora da Empresa Brasil de Comunicação (EBC), no seu
principal telejornal, o Repórter Brasil, na noite de sexta-feira. Em
menos de dois minutos, a “reportagem” exibiu trechos dos protestos e
paralisações em diversos estados.
Novamente, destaque para os bloqueios de rodovias e paralisações no
transporte público e nas escolas. Nenhum porta-voz dos trabalhadores foi
ouvido para contextualizar o significado daqueles atos. Oferecer
mecanismos para debate público acerca de temas de relevância nacional,
como preconiza a lei de criação da EBC, mandou lembranças dessa vez.
Esse episódio não parece estar desconectado da grave intervenção
promovida por Michel Temer sobre a EBC, que praticamente eliminou as
garantias de autonomia e independência de sua programação frente ao
governo, ao extinguir principalmente o Conselho Curador e os mandatos do
diretor-presidente e do diretor-geral.
O contraponto
Coube aos meios de comunicação alternativos oferecer uma cobertura
decente e proporcional ao tamanho das paralisações e mobilizações da
última sexta-feira. Apenas para ficar em um dos exemplos mais
expressivos, a Mídia Ninja utilizou seus canais nas redes sociais para
distribuir, ao longo de toda a sexta-feira, um rico conteúdo das
manifestações, que incluía, principalmente, vídeos e fotos, com registro
de paralisações em mais de 20 cidades, incluindo diferentes categorias:
metroviários, rodoviários, professores, estudantes, trabalhadores da
limpeza urbana, e muito mais.
Vale destacar que, ao contrário da cobertura televisiva, onde as
filmagens se deram com distanciamento, partir do topo de edifícios ou do
alto dos helicópteros, a cobertura da Mídia Ninja se dá diretamente das
manifestações, abrindo espaço para falas dos trabalhadores e capturando
uma dimensão mais orgânica do significado desses atos. O portal Brasil
de Fato também publicou dezenas de matérias e postagens destacando a
abrangência das paralisações em todo o país.
Esse contraponto só reforça uma conclusão inevitável: a grande imprensa
só não cobriu o Dia Nacional de Greve porque não quis. Ou melhor,
porque tratou-se de uma deliberada decisão editorial de ignorá-lo e, com
isso, alienar ainda mais o conjunto da sociedade sobre o debate do
presente e do futuro do país.
Não há democracia sem mídia democrática. E, sem democracia, não se constrói um país justo. Re-existir sempre, calar jamais!
*Pedro Rafael é jornalista, mestre em comunicação pela Universidade de
Brasília (UnB) e secretário-executivo do Fórum Nacional pela
Democratização da Comunicação (FNDC). Colaboraram Bia Barbosa e Renata
Mielli