quarta-feira, 14 de julho de 2010

Programa estatal de televisão argentino faz sucesso criticando imprensa privada

Lamia Oualalou
Opera Mundi

Buenos Aires - “Temos de sair às ruas para apoiar Cristina. Todos para a Praça de Maio!”. A convocação não foi lançada por nenhum diretório do partido peronista, favorável ao governo de Cristina Kirchner, mas apareceu no Facebook do programa de televisão 6,7,8. Em poucas horas entre 10 e 15 mil pessoas se aglomeravam diante da Casa Rosada, palácio presidencial de Buenos Aires.

O programa surgiu há um ano e meio. Apresentado por cinco jornalistas , passa no Canal 7, emissora estatal, diariamente às nove da noite. Idealizado pelo produtor Diego Gvirtz e apresentado pelo jornalista Luciano Galende, consegue atrair em media 170 mil telespectadores por edição. Já possui mais de 190 mil seguidores no Facebook.

Estrutura-se como resenha crítica da maneira como alguns veículos de comunicação produzem e divulgam informações. Utilizando extratos de jornais e tapes de televisão, batem pesado na chamada “grande imprensa” – especialmente no jornal Clarín.

Um exemplo é a história dos dois filhos adotivos da dona do Clarín, Ernestina Herrera. Segundo as Avós da Praça de Maio, os filhos foram adotados ilegalmente durante a última ditadura militar do país (1976-1983). Veja vídeo.



“Jornalistas falando de outros jornalistas na televisão no horário nobre é a novidade”, diz Marcelo García, especialista em estudos da comunicação. “A grande imprensa e os jornalistas mais famosos eram respeitados como vacas sagradas depois do restabelecimento da democracia, em 1983. O 6,7,8 está fazendo o que ninguém fez antes: mostrar as intenções políticas que movimentam a mídia local”.

A maior parte da audiência do programa não é composta por militantes cegos do “kirchnerismo”, mas pessoas revoltadas com a agressividade da oposição e de parte da mídia contra as políticas do governo. “Eu não sou um ‘militante K’, mas não agüento mais ser chamado de imbecil porque sou a favor da lei de mídia”, irrita-se o universitário Damián.

Horácio Verbitsky, criador do jornal Página 12 e ativista de movimentos pelos direitos humanos, lembra que a lei dos meios de comunicação foi debatida em 24 fóruns regionais por seis meses, para reunir críticas e propostas antes de seguir para o Congresso. “Este debate riquíssimo, sem precedentes na democracia argentina, foi reduzido pelo grupo Clarín ao rótulo de ‘lei de radiodifusão K’, o que muitos acharam insuportável”, declarou a Opera Mundi.

“O fenômeno 6, 7, 8 pode ser explicado pela postura em defesa de interesses econômicos adotado pelos principais veículos de comunicação”, avalia Verbitsky. “Essa opção certamente danifica a credibilidade da imprensa e abre o público para quem a critica.”

De fato, pesquisa recente organizada pelo Fórum do Jornalismo Argentino revela insatisfação generalizada de leitores, ouvintes e telespectadores com a imprensa local. Dos entrevistados, 51% acreditam que os jornalistas estão mais afinados com o chamado establishment do que com o povo. Além disso, 49% pensam que a informação é controlada por grupos econômicos.

Chapa-branca
Mas o programa já começa a receber restrições por atuar de forma semelhante a seus concorrentes, trocando apenas os sinais. Os convidados são próximos ao governo, quando não é o próprio ex-presidente Néstor Kirchner. Seu caráter “chapa-branca” é uma das principais críticas. A jornalista María Julia Oliván, que apresentava o programa no primeiro ano de exibição, acabou deixando o posto, considerando que o governismo não combinava com bom jornalismo.

O sociólogo Artemio López, dono de um dos blogs políticos mais lidos (Ramble Tamble), considera que o programa passou dos limites. “A análise da mídia realizada pelo 6,7,8 é impecável. O problema surge quando os jornalistas começam a falar de política, com seus monólogos de progressismo puro, soberbo, elitista e também autista”.

O jornal Clarín, enfurecido pelo sucesso do 6,7,8, publicou matérias denunciando o mau uso do dinheiro público. O jornal calcula que cada edição custe 24 mil pesos (12 mil reais), totalizando meio milhão de pesos (250 mil reais) mensais.

Os produtores do 6,7,8, entretanto, ignoram as críticas e assumem o alinhamento com o governo. Quando a oposição de direita começou a chamá-los de “mierda oficialista”, eles pediram para o cantor e humorista Carlos Barragán compor um hino para o programa: “Yo soy la mierda oficialista” O refrão é claro “eu sou a merda governista, sou pago para dizer que há democracia e ser otimista”. Nas manifestações pró-governo, os militantes mostram cartazes e camisetas com a frase. Veja o clipe de “Yo soy la mierda oficialista”.



Batalha midiática
O programa 6,7,8 aparece como a principal ferramenta do governo na sua batalha midiática. Mas não é a única: o governo apoiou a criação do jornal gratuito El Argentino e, mais recentemente, do Tiempo Argentino, que copia de maneira ostensiva o projeto gráfico do Clarín. Ambos jornais foram lançados por um empresário próximo aos Kirchner, Sergio Szpolski.

A estratégia é denunciada pelo Clarín. O jornal lamentou, em matéria publicada no dia 20 de junho, o uso de verba pública: “Em tempos democráticos, ninguém tinha usado a potência da máquina estatal e paraestatal junto com a propaganda para calar as vozes dissidentes. É uma estrutura gigantesca de mídia que difama contra oposicionistas e jornalistas críticos”.

O Clarín protestou especificamente contra o uso da propaganda oficial, lembrando que em 2009, o grupo de Szpolski concentrou 21,3 milhões de reais de publicidade estatal, o que representa 19,3% do total distribuído pelo governo para a imprensa escrita. De maneira semelhante, ressalta que o jornal Buenos Aires Económico, do empresário Daniel Hadad, sócio de Szpolski e simpático ao governo, recebeu o dobro de verba publicitária do jornal oposicionista Crítica de la Argentina, apesar de ter um quarto da audiência.

Alguns políticos próximos aos Kirchner reconhecem que a política é confusa. “Por um lado, o governo faz coisas ótimas, como a lei de mídia. Por outro, faz negócios com pessoas pouco confiáveis, como Szpolski, que está conosco somente para captar dinheiro”, confidencia um parlamentar peronista.

Se o futuro não é garantido, o governo conseguiu, especialmente com o programa 6,7,8, lançar um grande debate sobre a objetividade da mídia. “Antes, no jornalismo, tinha um ditado segundo o qual nenhum político podia sobreviver a duas primeiras páginas negativas do Clarín”, lembra o jornalista Pedro Brieger, um dos mais premiados da televisão argentina. “Isso acabou”.

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