Documentário 1964 – Um golpe contra o Brasil resgata acontecimentos e interesses que conduziram à queda de João Goulart
1º/04/2013
Patrícia Benvenuti,
da Reportagem
Uma
série de iniciativas nos últimos anos vem colocando em pauta o período
da ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985). Além de ações de
repercussão como a Comissão da Verdade, livros e filmes lançados
recentemente também resgatam acontecimentos e contribuem para a
compreensão do que ocorreu na época.
Um dos mais
novos trabalhos nesse sentido é o documentário 1964 – Um golpe contra o
Brasil, uma parceria entre o Núcleo Preservação da Memória Política e a
TVT – Televisão dos Trabalhadores. Lançada em março deste ano, a
produção tem como foco a questão do regime, mas com uma proposta
diferente: relatar e analisar os momentos que antecederam o golpe.
“O
Núcleo [de Preservação da Memória Política] pensou em um vídeo capaz de
informar aos mais jovens o que foi o pré-golpe e o golpe para que se
entendam os interesses de classe em jogo no Brasil naquele momento e os
interesses do grande império estadunidense nessa história”, explica o
diretor do documentário, o jornalista, escritor e artista plástico
Alipio Freire.
O vídeo se antecipa aos 50 anos do
golpe, que se completarão em 2014. Para Freire, é preciso desde já
disponibilizar outras versões para os fatos, diferentes das que contam a
história oficial. “É preciso que as pessoas, e sobretudo os jovens,
tenham acesso a outro tipo de informação”, diz.
O
documentário se inicia com a eleição de Jânio Quadros para a
presidência da República e João Goulart como vice, em 1960, e se estende
até a posse de Humberto Castello Branco, primeiro presidente militar,
em 15 de abril de 1964. A narrativa foi construída a partir de
depoimentos de militantes e opositores do regime como Almino Affonso,
então deputado federal e ministro do Trabalho do governo Jango; Rafael
Martinelli, dirigente do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT); a
socióloga Maria Victoria Benevides; Aldo Arantes, então presidente da
União Nacional dos Estudantes (UNE), e João Pedro Stedile, da
coordenação nacional do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra
(MST).
O vídeo não será comercializado, e sim
distribuído para instituições, com a recomendação de que todas que
recebam o material façam e difundam cinco cópias, a fim de que o projeto
alcance o maior público possível. Em breve, também será disponibilizado
na internet.
Para o segundo semestre, está
previsto o lançamento de uma versão do documentário voltada à exibição
nas escolas. Com o mesmo conteúdo, o material será dividido em oito
módulos de 24 minutos cada.
1964 é o primeiro
longa-metragem dirigido por Alipio Freire. Nascido em Salvador (BA) em
1945, Alipio Freire vive em São Paulo desde os 16 anos. Sua militância
na Ala Vermelha (grupo dissidente do PCdoB) durante o regime o levou à
prisão entre 1969 e 1974. Em entrevista ao Brasil de Fato, o jornalista
destaca a necessidade de desvelar os interesses de classe que compunham a
luta política naquele momento.
Brasil de Fato – Como surgiu a ideia para esse documentário?
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| | | Alipio Freire - Foto: Douglas Mansur |
Alipio Freire –
Quem pensou em fazer o vídeo foi o Núcleo de Preservação da Memória
Política, do qual sou presidente nesse momento. O Núcleo pensou um vídeo
capaz de informar aos mais jovens o que foi o pré-golpe e o golpe, para
que se entendam os interesses de classe em jogo no Brasil naquele
momento e os interesses do grande império estadunidense nessa história.
No próximo ano serão 50 anos do golpe de Estado civil-militar e eles
contarão suas versões oficiais, mais ou menos liberaloides ou
ditatoriais, mas todas como um grande mouro [neste sentido, trabalho,
abnegação da vida] pela democracia. É preciso que as pessoas, e
sobretudo os jovens, tenham acesso a outro tipo de informação. Queremos
que as pessoas possam entender bem aquele tempo, porque disso depende
grande parte do presente e, sobretudo, o futuro do país.
Qual a principal contribuição trazida por esse documentário, na sua opinião?
É
explicitar a disputa de classes no Brasil e de hegemonia dos Estados
Unidos no mundo e entender a política como luta de classes. Política é
luta de classes, é a disputa entre as classes, setores e segmentos pelos
seus interesses. Não tem nenhuma mágica na política.
No
documentário, nós trabalhamos com as classes sociais no Brasil, tanto o
grande capital aliado ao capital internacional quanto um programa
gestado por setores da burguesia nacional a partir de um projeto de
desenvolvimento nacional. Trabalhamos também com os trabalhadores
urbanos, particularmente a classe operária, com o movimento camponês,
estudantes, sujeitos que atuaram na política institucional de correntes
políticas diferentes, pessoas da esquerda cristã, comunistas,
trabalhistas.
Mas não tive o menor interesse em
entrevistar o outro lado. Ouvir certos outros lados em algumas
circunstâncias é importante, mas eles [figuras do regime] estão falando o
tempo inteiro nos jornais. Tem os filmes deles, que não nos ouvem. Essa
é a tentativa de uma versão do povo brasileiro de sua história. É um
vídeo com corte de classe, sim, como os deles são. Só que as nossas
classes são outras.
Há um corte tolo sobre a
ditadura, que acredita que o golpe e a ditadura foram militares. Não
foram. Os militares tiveram um peso, mas foi civil-militar. Quando você
diz que é militar, onde você põe o fim da ditadura? Na hora em que o
Tancredo [Neves] não assume porque fica doente, e assume outro civil,
José Sarney. A ditadura não acaba aí. Acaba quando você constitui um
novo Estado de Direito, e isso foi em 1988.
Como tem sido a recepção do público?
As
pessoas têm gostado, o que para nós é extremamente importante. Têm
gostado não só dos conteúdos, mas da maneira como está exposto. Estou
muito contente e vou ficar mais ainda quando os brasileiros,
particularmente os jovens, e outros companheiros do mundo inteiro se
apropriarem dessa história. [O vídeo] é um produto para incidir sobre o
saber e a reflexão das pessoas, mesmo que não concordem com o que se
fala.
Você acredita que isso de alguma forma atrapalha a compreensão daquele momento?
Muito,
demais, porque evita que os que criam e alimentam os mitos façam a
crítica às nossas derrotas e também às vitórias anteriores. Crítica no
sentido de análise, não é xingar e muito menos um ataque pessoal contra o
mito que geralmente não tem nada a ver com isso. São os seguidores que
criam essa situação, e isso não é bom. Devemos atingir as pessoas olho
no olho e pela porta da frente da cabeça, não mexendo com emoções
desconhecidas. Respeitar os nossos companheiros que tombaram e lutaram
lá atrás é uma coisa. A mitologização é outra, porque não trabalha com
seres humanos, trabalha com os ideais, e isso ninguém foi e ninguém
será.
No teaser
de apresentação do documentário você afirmou que é preciso superar o
sentimento de “solidariedade ao sofrimento” que está presente em relação
à ditadura. O que você quis dizer com isso?
No
conjunto da sociedade hoje vai se criando uma consciência, a partir dos
governos civis, que desabrocha com mais visibilidade a partir do
segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e da presidenta
Dilma [Rousseff]. Tiveram grande visibilidade as iniciativas do [ex-]
ministro Paulo Vanucchi, dos Direitos Humanos, criando os Memoriais das
Pessoas Imprescindíveis, jogando para a rua um assunto que estava entre
quatro paredes; e do presidente da Comissão de Anistia, Paulo Abrão,
que, ao criar as caravanas da Anistia, levou para o Brasil inteiro essa
discussão. Fora os grupos de direitos humanos que, com isso, têm seu
trabalho potencializado. Depois veio a Comissão da Verdade, que eu acho
um avanço imenso para esse país.
Acontece que, de
um modo geral, o primeiro movimento das pessoas frente a isso é um
sentimento extremamente generoso de solidariedade com os que foram
perseguidos, torturados, assassinados e desaparecidos, o que é muito
bom. No entanto, nós não podemos parar por aí. É preciso que toda essa
sociedade saiba quais os motivos que moveram essas pessoas a resistir e o
que aconteceu no país naquele momento. Consideramos fundamental dar a
verdadeira dimensão política dos programas e projetos que estavam em
curso durante o governo João Goulart e que foram massacrados pelas
elites brasileiras.
Falando um pouco sobre o período do pré-golpe, o que representava a figura do Jango naquele momento?
A
rigor, o Jango representava um programa que se inicia pensado e
aplicado no governo de Getúlio Vargas dos anos 1950, que o leva ao
suicídio. Países atrasados com o desenvolvimento industrial buscavam
esse desenvolvimento bancado pelo Estado e articulado com os capitais
nacionais e fundado – daí seu grande aspecto popular – em um grande
programa de distribuição de renda. A reforma agrária teria um papel
fortíssimo nisso. Primeiro porque ela geraria trabalho próximo das
ferrovias e das rodovias, e aí o camponês podia desaguar sua produção.
Vinha junto com isso a luz elétrica no campo. A indústria de capital
nacional produziria geladeiras, liquidificadores e máquinas de costura
que eles [camponeses] poderiam consumir. Isso era uma revolução na
concepção de Brasil naquele tempo. Ele [Jango] representava esse
projeto.
Havia mesmo o apoio das organizações populares para as reformas de base?
Sim,
mas o grande problema eram duas questões. Uma é um entulho autoritário
que está presente até hoje, que é a Carta Sindical e o Imposto Sindical,
ou seja, a subordinação da organização dos trabalhadores ao Estado. O
movimento sindical durante a ditadura se bateu contra isso violentamente
e depois as centrais sindicais não derrubaram isso. Se o sindicato
começa a ter atividades de um tipo que não estão na Carta Sindical, o
Estado pode intervir.
Junto com essa questão está
o tipo de política dominante, que é a organização dos trabalhadores e
do povo em torno das sedes dos sindicatos e das lideranças. E o que
acontece em 1964. Tudo era organizado em torno de líderes. Veio o golpe e
bastou ocupar as sedes dos sindicatos, botar as lideranças para correr
ou matar, que não sobrou organização independente da classe
trabalhadora. É diferente, por exemplo, se os trabalhadores estivessem
organizados dentro dos seus locais de trabalho. E isso serve tanto para
os [trabalhadores] urbanos como para os rurais.
De que forma, para você, os fatos narrados no documentário se relacionam com o presente?
Toda
essa memória tem que ser usada para a transformação do presente e do
futuro. Senão ela vira nostalgia ou narcisismo. Essa memória tem que nos
fazer lembrar que até hoje o mesmo terror de Estado da época da
escravidão, da ditadura Vargas e da civil-militar instalada em 1964
permanece. Está nas chacinas das periferias de São Paulo e nas chacinas
contra o MST no campo. Isso é o terror de Estado, as torturas continuam a
existir. É que o foco agora saiu da repressão maior contra a oposição, e
se fixou nos trabalhadores mais pobres. Nos bairros de periferia, não
vigora sequer o mais singelo direito garantido pela Constituição, que é o
direito de ir e vir. Começa a escurecer e todos se trancam em casa, com
medo igualmente da polícia e do crime organizado, e cada vez temos mais
dificuldade de saber quais os limites entre um e outro. O terror de
Estado está aí, vivo.
“1964 – Um golpe contra o Brasil”
Direção: Alipio Freire
Duração: 147 minutos
Foto do topo: Acervo Iconographia