25/06/2013
Venício A. de Lima
Apesar
da proximidade cronológica, parece razoável observar que o estopim para
as manifestações populares que estão ocorrendo no país foi o aumento
das tarifas do transporte coletivo e a repressão violenta da polícia
(vitimando, inclusive, jornalistas no exercício de sua atividade
profissional) – não só à primeira passeata realizada em São Paulo, mas
também à manifestação realizada antes da abertura da Copa das
Confederações, em Brasília. A partir daí, um conjunto de insatisfações
que vinha sendo represado explodiu.
A primeira
reação da grande mídia, bem como das autoridades públicas, foi de
condenação pura e simples das manifestações que, segundo eles, deveriam
ser reprimidas com ainda maior rigor. No entanto, à medida que o
fenômeno se alastrou, autoridades e mídia alteraram a avaliação inicial.
A
grande mídia, então, passa a cobrir os acontecimentos como se fosse
apenas uma observadora neutra, que nada tem a ver com os fatos que
desencadearam – para o bem ou para o mal – todo o processo.
Centralidade da mídia
Nas
sociedades contemporâneas, apesar da velocidade das mudanças
tecnológicas, sobretudo no campo das comunicações, a centralidade da
mídia é tamanha que nada ocorre sem seu envolvimento direto e/ou
indireto. Qual teria sido esse envolvimento no desencadeamento das
atuais manifestações?
Um primeiro aspecto chama a
atenção. Pelo que se sabe as manifestações têm sido convocadas por meio
de redes sociais. Isto é, através de um sistema de comunicação
independente do controle da grande mídia.
Na
verdade, a se confirmar que a maioria dos participantes é de jovens (em
Brasília, um dos “convocadores” da “Marcha do Vinagre” tem apenas 17
anos), trata-se de um segmento da população que se informa
prioritariamente pelas redes sociais na internet e não pela grande mídia
– jornais, revistas, radio, televisão.
Apesar
disso, um aspecto aparentemente contraditório, mas fundamental –
revelado inclusive em cartazes dispersos nas manifestações – é que os
manifestantes se consideram “sem voz pública”, isto é, sem espaço para
expressar e ter a voz ouvida.
Desnecessário
lembrar que a grande mídia ainda exerce, na prática, o controle do
acesso ao debate público, vale dizer, das vozes que se expressam e são
ouvidas.
Além disso, a cultura política que vem
sendo construída e consolidada no Brasil, pelo menos desde que a
televisão se transformou em “mídia de massa” hegemônica, tem sido de
desqualificação permanente da política e dos políticos. E é no contexto
dessa cultura política que as novas gerações estão sendo formadas –
mesmo não se utilizando diretamente da velha mídia.
Emerge, então, uma questão delicada.
A mídia e o system blame
Independentemente
das inúmeras e verdadeiras razões que justificam a expressão
democrática de uma insatisfação generalizada por parte de parcela
importante da população brasileira, não se pode ignorar o papel da
grande mídia na construção dessa cultura política que desqualifica
sistematicamente a política e os políticos. E mais importante: não se
pode ignorar os riscos potenciais para o regime democrático da
prevalência dessa cultura política.
Recorri
inúmeras vezes, ao longo dos anos, a uma arguta observação da professora
Maria do Carmo Campello de Souza (já falecida) ao tempo da transição
para a democracia, ainda no final da década de 1980.
Em
capítulo com o título "A Nova República brasileira: sob a espada de
Dâmocles", publicado em livro organizado por Alfred Stepan
Democratizando o Brasil (Paz e Terra, 1988), ela discute, dentre outras,
a questão da credibilidade da democracia. Nas rupturas democráticas,
afirma ela, as crises econômicas têm menor peso causal do que a presença
ou ausência do system blame (literalmente, "culpar o sistema"), isto é,
a avaliação negativa do sistema democrático responsabilizando-o pela
situação.
Citando especificamente os exemplos da Alemanha e da Áustria na década de 1930, lembra Campello de Souza que "o
processo de avaliação negativa do sistema democrático estava tão
disseminado que, quando alguns setores vieram em defesa do regime
democrático, eles já se encontravam reduzidos a uma minoria para serem
capazes de impedir a ruptura".
A análise da
situação brasileira, há mais de duas décadas, parece mais atual do que
nunca. A contribuição insidiosa da mídia para o incremento do system blame é apontada como um dos obstáculos à consolidação democrática. Vale a pena a longa citação:
A
intervenção da imprensa, rádio e televisão no processo político
brasileiro requer um estudo linguístico sistemático sobre o "discurso
adversário" em relação à democracia, expresso pelos meios de
comunicação. Parece-nos possível dizer (...) que os meios de comunicação
tem tido uma participação extremamente acentuada na extensão do
processo de system blame (...). Deve-se assinalar o papel exercido pelos
meios de comunicação na formação da imagem pública do regime, sobretudo
no que se refere à acentuação de um aspecto sempre presente na cultura
política do país – a desconfiança arraigada em relação à política e aos
políticos – que pode reforçar a descrença sobre a própria estrutura de
representação partidária-parlamentar (pp. 586-7). (...)
O
teor exclusivamente denunciatório de grande parte das informações acaba
por estabelecer junto à sociedade (...) uma ligação direta e
extremamente nefasta entre a desmoralização da atual conjuntura e a
substância mesma dos regimes democráticos. (...) A despeito da evidente
responsabilidade que cabe à imensa maioria da classe política pelo
desenrolar sombrio do processo político brasileiro, os meios de
comunicação a apresentam de modo homogeneizado e, em comparação com os
dardos de sua crítica, poupam outros setores (...). Tem-se muitas vezes a
impressão de que corrupção, cinismo e desmandos são monopólio dos
políticos, dos partidos ou do Congresso (...). (pp.588-9, passim).
Avanços e riscos
As
manifestações populares devem, por óbvio, ser vistas por aqueles em
posição de poder como uma oportunidade de avançar, de reconsiderar
prioridades e políticas públicas.
Do ponto de
vista da grande mídia, é indispensável que se reflita sobre o tipo de
cobertura política que vem sendo oferecida ao país. Encontrar o ponto
ideal entre a fiscalização do poder público e, ao mesmo tempo,
contribuir para o fortalecimento e a consolidação democrática, não
deveria constituir em objetivo da grande mídia? A quem interessa a
ruptura democrática?
Apesar de ser um tema
delicado e difícil – ou exatamente por essa razão – é fundamental que se
considere os limites entre uma cobertura sistematicamente adversária da
política e dos políticos e os riscos de ruptura do próprio sistema
democrático.
A ver.
Venício
A. de Lima é jornalista e sociólogo, professor titular de Ciência
Política e Comunicação da UnB (aposentado), pesquisador do Centro de
Estudos Republicanos Brasileiros (Cerbras) da UFMG e autor de Política
de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora
Publisher Brasil, 2012, entre outros livros.
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