Por Sylvia Debossan Moretzsohn em 26/08/2014 na edição 813
O propósito do cineasta Jorge Furtado, roteirista e diretor de O Mercado de Notícias, atualmente em cartaz em várias cidades brasileiras, é fazer uma defesa radical do bom jornalismo, “sem o qual não há democracia”. Essa intenção é explicitada na abertura do filme e reiterada no site (http://www.omercadodenoticias.com.br/) que apresenta os objetivos do projeto e reúne as entrevistas e o material utilizado para a realização do documentário, fruto de longa pesquisa. A maneira escolhida para fazer essa defesa, entretanto, pode dar margem a interpretações que contrariam as intenções originais.
Em suas entrevistas sobre o filme, Furtado conta que se encantou com a descoberta de uma peça de Ben Jonson, autor contemporâneo de Shakespeare, que faz uma crítica mordaz à imprensa, então nos seus primórdios: apresenta-a como uma atividade submetida à senhora Pecúnia – isto é, aos interesses econômicos –, voltada para a satisfação da curiosidade do povo, ávido por comprar notícias capazes de gerar escândalo ou alimentar fofocas. Em suma, a imprensa seria basicamente venal e frívola, mais ou menos no mesmo sentido apontado por Balzac em Ilusões Perdidas, em meados do século 19, ou dos aforismas demolidores de Karl Kraus, já no início do século 20.
A fala versus a imagem
É claro que essas características se mantêm, apesar da diferença de contextos e da sofisticação dos mecanismos que movimentam hoje esse grande negócio. Mas este é apenas um lado da questão, ou melhor, é a base sobre a qual outras questões se apresentam. Certamente a imprensa foi e é muito mais que isso, do contrário não precisaria existir – ou, pelo menos, não seria uma atividade fundamental para a democracia.
A peça de Ben Jonson foi encenada especialmente para ser utilizada como fio condutor do filme, que articula essas cenas à exposição de alguns casos notórios em que a imprensa brasileira agiu de maneira antiética e a depoimentos de vários jornalistas de renome. Esses depoimentos idealmente funcionariam como um contraponto, pois defendem a necessidade do jornalismo, ao mesmo tempo em que, na maioria dos casos, expõem críticas severas a práticas profissionais condenáveis e à própria estrutura que submete essa atividade à lógica do mercado.
Esteticamente, porém, o resultado é outro: de um lado, uma peça que exuberantemente demole a imprensa com humor e ironia, em meio a exemplos documentados de mau jornalismo – a culminar com a fantástica e hilariante reconstituição da “descoberta” de um suposto valiosíssimo quadro de Picasso, na verdade uma reprodução comum, que estaria inadvertidamente na parede de uma repartição pública, por desleixo e ignorância do governo Lula. Do outro lado, apenas a fala dos entrevistados: declarações de princípio, que têm a força das palavras, não da imagem.
A qualidade do recheio
Por que, com tantos jornalistas de peso, não se mostra o que eles próprios, ou pelo menos alguns deles, produziram de notável? A começar pela famosa denúncia da fraude na concorrência da Ferrovia Norte-Sul, que rendeu a Janio de Freitas o Prêmio Esso de Reportagem de 1987. O caso merece destaque em seu depoimento disponível no site, mas não aparece no filme.
Janio, a propósito, comparece várias vezes com observações rigorosas e contundentes. Já na parte final do documentário, joga um balde de água fria nas ilusões de uns e outros:
“O jornalismo num país como o Brasil é feito por empresas capitalistas interessadas no lucro. O jornalista costuma pensar que um jornal é editado pra fazer jornalismo. Não é, não. É editado para publicar publicidade. Que é o que dá dinheiro. O jornalismo recheia o entorno dos anúncios”.
Ainda assim, a qualidade do recheio faz toda a diferença. Teria sido importante exibi-la. Do contrário, a frase – também de Janio – que encerra o filme, “o jornalismo depende dos jornalistas”, soa puramente idealista.
Possibilidades e limites
No texto em que apresenta seu projeto, Furtado diz que sua obra é sobre imprensa e democracia. Discutir imprensa e democracia, porém, implicaria discutir as possibilidades e limites do jornalismo feito nas condições impostas pelo mercado. Os limites estão claros. As possibilidades, não. De tal modo que, ao sair do cinema, pode ficar a sensação de que Balzac teria razão ao afirmar que a imprensa, se não existisse, precisaria não ser inventada. O que é particularmente preocupante nos dias que correm, em que uma certa juventude, aí incluídos estudantes de jornalismo, vem cultivando, desde a explosão dos protestos de junho do ano passado, um ódio cada vez maior à imprensa “burguesa”, “golpista”, “fascista”.
Mas esses talvez nem se animem a ver o filme, uma vez que já têm suas convicções. Pelo contrário, houve manifestações de entusiasmo entre jovens que, depois de assistirem ao documentário, confirmaram ou passaram a ter certeza de que esta é mesmo a profissão que devem abraçar. Outros talvez se decepcionem: a reação a qualquer obra é sempre múltipla e, frequentemente, imprevisível.
Não se trata, portanto, de especular sobre os possíveis resultados, mas de discutir os caminhos escolhidos para a realização de um projeto de tal relevância.
Nossa imprensa, afinal, é feita de uma história cheia de contradições, com episódios de abjeto servilismo e de notável resistência, tanto em tempos de ditadura quanto em tempos de democracia. Exibir contrapontos práticos aos maus exemplos apresentados no filme teria sido relevante para realizar melhor as intenções de destruir ilusões mas preservar as esperanças, precisamente na base do necessário equilíbrio – ou confronto – entre o otimismo da vontade e o pessimismo da razão.
Leia também
O jornalismo e o mercado de notícias – Norma Couri
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Sylvia Debossan Moretzsohn é jornalista, professora da Universidade Federal Fluminense, autora de Repórter no volante. O papel dos motoristas de jornal na produção da notícia (Editora Três Estrelas, 2013) e Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico (Editora Revan, 2007
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