Fala
Ignacio Ramonet: publicações tradicionais desaparecerão como
dinossauros; desafio é assegurar, nas novas mídias em rede, profundidade
e sustentação
Entrevista a Raúl Zibechi, em La Vaca
Tradução: Bruna Bernacchio
O jornalista e analista uruguaio
conversa com o também jornalista e comunicólogo espanhol, que afirma
que “estamos diante de uma revolução que transborda o campo da
comunicação para ser uma revolução social”
Caminhamos pelas ruas de Bogotá, onde Ignacio Ramonet
assistiu ao décimo aniverśario da edição local de Le Monde
Diplomatique, convidado, por Desdeabajo, coletivo editor de livros e
jornais. Teve tempo, e ânimo, para fugir do turbulento centro e dedicar
umas horas a percorrer o sul pobre da capital colombiana: Cidade
Bolívar, onde se desenvolvem experiências de base notáveis. Não para de
perguntar. Seu conhecimento de detalhes da história e da vida dos
latinoamericanos permite assegurar que o colonialismo não é uma barreira
intransponível.
Em certo momento, a conversa
tornou-se mais sistemática, um pingue-pongue de perguntas e respostas
que não tiveram nem começo nem fim.
Em A explosão do jornalismo
você analisa a crise da imprensa e foca no novo poder adquirido por
quem antes era leitor ou audiência passiva. É o que nós, jornalistas
críticos, sempre havíamos sonhado, mas você vê, nesse papel ativo uma
das causas da crise da mídia atual.
A grande transformação produzida
pela internet na circulação de informação é que, onde antes dominava o
que chamo de “mídia solar” — astros que enviavam seus raios de sol sobre
toda a sociedade, impregnando-a com sua supremacia — acabou. Não há
emissores puros, que tenham o monopólio da informação e receptores
puros, que tenham de resignar-se com tal função de receptores. A
revolução que vivemos é que cada receptor pode ser também emissor.
Pode fazer uma página na
internet com os amigos, seu blog, facebook ou twitter. E os grandes
veículos têm uma vitrine digital, onde se pode intervir fazendo
comentários que contrapõem e complementam os artigos; o leitor pode
indicar elementos a serem corrigidos do artigo inicial, além de fotos e
vídeos. O que eu quero dizer é que a informação já não é algo limitado e
fixo. A concepção da informação vem da imprensa, que é o meio que
influenciou a rádio e a televisão, e sua origem é o trabalho da era
industrial.
Exato. No fordismo há um
projeto, um plano, e na base disso se realiza um produto terminado,
intocável. Isso já não funciona nem sequer na indústria, onde aconteceu a
revolução do toyotismo, nos anos 80. Fabrica-se, por exemplo, o carro
que o cliente quer. A decisão já não vem da empresa, mas de baixo. Agora
sucede o mesmo na mídia. Pede-se ao jornalista um artigo com certas
características, mas logo os leitores vão completando-o, reformando-o,
transformando-o. Por consequência, é uma obra em processo. Isso é uma
revolução muito importante.
Agora, como consequência das
mudanças técnicas e culturais, o leitor, a audiência, têm um poder como
nunca tiveram. Se a isto somamos a crise econômica, estamos diante de
uma crise dos velhos monopólios da informação. Newsweek deixou sua edição em papel, The Guardian debate a possibilidade de dar este passo, El País despede um terço do seu pessoal.
O que estamos vivendo no campo
da comunicação só é comparável à invenção da prensa de tipos móveis, por
Gutemberg, em 1440. Ela não transformou apenas a produção do texto
escrito, a difusão do livro. Também produziu o humanismo como escola de
pensamento, o Renascimento e a explosão das universidades e do saber,
com tudo o que isso significa. O latim deixou de ser a língua comum e
começou a ser substituída pelas línguas nacionais, que foram se
desenvolvendo. Agora, acontece algo similar. Estamos diante de uma
revolução que transborda o campo da comunicação para ser uma revolução
social. Envolve o setor financeiro, o comércio, as relações sociais e a
difusão da cultura. Uma revolução tecnológica transforma tudo.
O jornalismo vive todos os
efeitos deste processo. A estrutura da indústria da informação e a
maneira de produzir informação estão sendo transformadas. E é preciso
lembrar que estamos apenas no engatinhar inicial, no primeiro segundo da
história da internet. Algumas das realizações mais espetaculares das
transformações tecnológicas, como os tablets, facebook, o Iphone, não
existiam há apenas cinco anos e não podemos imaginar o que acontecerá
nos próximos cinco.
Os monopólios vão sofrer. Foram a
resposta da indústria empresarial da informação aos avanços
tecnológicos dos anos 1960 e 70. As tecnologias anteriores eram
específicas para o som, a escrita e a imagem, mas neste período
convergiram para uma mesma tecnologia, que é a tecnologia digital. A
partir desse momento, não há diferença em como se constroi um texto, um
som ou uma imagem. Constroem-se da mesma maneira, com as mesmas
máquinas, os computadores.
A internet traduz uma nova forma
de expressão. Os seres humanos usaram, desde o começo da humanidade,
três sistemas de signos para comunicar-se: a palavra, o desenho e a
escrita — a mais recente. Com a internet, aparece um quarto, que é a
mescla dos três, mais uma dimensão complementar: a velocidade e
extensibilidade, que permite alcançar o planeta num segundo. Depois de
tudo isso, a paisagem da comunicação não pode permanecer como era.
Porque a imprensa continua sendo
pesada. Além de ser o meio mais antigo, é o mais marcado pela era
industrial, com operários, máquinas e toda a lógica da produção fabril.
Por isso, é tão afetada pelas mudanças.
O problema é que essa
transformação radical não tem sistema econômico. O sistema anterior, que
hoje tornou-se arcaico, tem muitos defeitos — mas é muito rentável.
Todos os jornalistas do mundo que seguem empregados podem viver porque
trabalham em meios tradicionais, mas os meios surgidos na era da
internet têm enormes problemas para sobreviver, não estão acoplados a um
meio tradicional ou multimídia importante. Como a cultura dominante na
internet é a gratuidade, o problema é: de que viverão os criadores,
autores e jornalistas? Haverá um declínio da criatividade? Isso é um
problema real.
Com o controle e o fechamento
dos veículos, busca-se frear a “pirataria”. Por um lado, há um movimento
da sociedade para que a internet siga sendo gratuita. Por outro, surge o
Wikileaks, que estabelece a mesma problemática, mas em outro
terreno impensável fora da internet. Estamos diante de uma situação
similar ao escândalo de Watergate ou aos Documentos do Pentágono
[Pentagon Papers], em que um informante passa dados reservados a um
veículo — Washington Post e The New York Times,
respectivamente. Nesse sentido, nada mudou. Mas o que, sim, muda é a
quantidade de inforrmação que se pode difundir agora, e a massividade é a
mesma.
Toda a sociedade está se
digitalizando e todos os arquivos, desde os da saúde até os das forças
armadas, estão sendo digitalizados. Enquanto há alguns anos eram
necessários caminhões para carregar toda essa informação, hoje com um
click em um computador movimentam-se milhares e milhares de documentos
desmaterializados, que podem se propagar para todo o planeta. O que o Wikileaks
fez foi difundir dados que prejudicam pessoas com poder, e isso que
criou a situação que converteu Julian Assange no inimigo público número
um dos Estados Unidos.
Na
América Latina temos um forte debate sobre o comum, em que se afirma
que os bens comuns não devem pertencer a nehum proprietário privado.
Você crê que a internet deve ser considerada um bem comum da humanidade?
É um debate que afeta a cultura,
e o que dizemos é que a cultura deve circular sem travas, porque isso
beneficia o ser humano. Na medida em que a internet é hoje o maior
difusor de cultura, creio que deve circular gratuitamente como um bem
comum. Agora, aparece outro problema: o que fazer com os direitos dos
criadores? Hollywood diz que a produção criativa tornou-se mais difícil
porque a pirataria tira-lhe 15% a 20% dos lucros. Os principais
produtores musicais do mundo desapareceram. Quase não se vendem mais
discos e o CD tornou-se defasado em apenas 15 anos, como acontece com
tudo o que é material. É evidente que a música pode circular como um
fluxo, e isso acontece com todas as demais produções. Por isso, há um
dilema. Ou o Estado assume este tema da mesma forma que assume a
produção e circulação de eletricidade, o tratamento e distribuição de
água, ou será preciso encontrar uma fórmula mista, para que o preço seja
acessível aos usuários e garan
ta, ao mesmo tempo, uma remuneração para os criadores. O problema é que
mesclar Estado com cultura é algo muito delicado. Porque pode haver a
tentação de favorecer alguns e prejudicar outros.
Em nenhum outro lugar do mundo
este tema está sendo debatido como na América Latina, onde as discussões
despertam, aliás, muita paixão. A informação era um monopólio do setor
privado que fazia o que queria. Além disso abusava, como no caso da
televisão, de um direito que não é do setor privado: as ondas
radioelétricas são propriedade do Estado, que as concede e pode exigir
do empresário que se comprometa com uma série de objetivos (como os
culturais) e, quando o operador não os respeita, retira a licença. O que
aconteceu na América Latina é que se manejou durante muito tempo a
informação como um monopólio a mais do setor privado. Por isso falamos
de “latifundios midiáticos”. A questão é como reduzir essa dominação,
preservando a pluralidade — porque a sociedade se enriquece quando
existem vários pontos de vista.
Em vários países, criou-se um
serviço público da informação, como os existentes em toda a Europa. O
melhor exemplo é a BBC inglesa, que tem uma estrutura de controle
separada do Estado. O chamado “quarto poder” precisa ser organizado fora
do governo, com suas próprias estruturas de controle, para que esteja
ao serviço do público e não de um governo ou do setor privado. Creio
que, na América Latina, o debate está tão acirrado porque estamos dando
os primeiros passos, saindo de quase um século de imobilidade. Quando
algo começa a se mover, os afetados colocam-se em uma situação de
guerra, sobretudo porque também estão sendo afetados pelas mudanças
tecnológicas e a revolução da internet. Essa confluência levou os donos
dos veículos a uma postura muito intransigente.
Que tipo de jornalistas
deveriam surgir nessa nova realidade? Qual é agora a função do
jornalista? Já não somos os que iluminamos o leitor ou uma audiência
passiva. Além disso, está surgindo uma multiplicidade de veículos
independentes criados e dirigidos por jornalistas que em muitos países
possuem um papel muito importante.
É o momento de nos repensarmos. Fazer bom jornalismo sempre foi e
continua sendo difícil. Ter acesso a tecnologias que permitem fazer
coisas impensáveis anos atrás, o fato de que da minha casa eu possa
fazer uma televisão global, é muito importante. Mas essa revolução de
ferramentas não soluciona a questão do conteúdo. O problema, portanto, é
o mesmo de sempre. A principal mudança é a interatividade da qual
estamos falando. É possível fazer um novo jornalismo do tipo Wikileaks,
colocar na web as notícias e permitir que as pessoa interpretem e façam o
que quiserem com essa informação. É possível fazer jornalismo cívico,
como o que fazem algumas associações dos Estados Unidos, o chamado
jornalismo sem fins lucrativos. Como a maioria das grande empresas estão
em crise e já não têm recursos para financiar investigações sérias, o
jornalismo está perdendo qualidade em escala mundial — e qualquer
cidadão sabe que um jornalismo de qualidade é i
ndispensável para ter uma democracia de qualidade.
Aquela
prática dos editores, de poupar dois ou três jornalistas do trabalho
cotidiano, durante algumas semanas, para que investigassem um tema
importante, já não acontece…
Não há recursos para tanto,
menos ainda para enviar uma equipe a outra parte do mundo para produzir
notícias. Por isso, o jornalismo de investigação, que é um gênero nobre,
está desaparecendo. Isso está ligado ao declínio da democracia atual.
Porque a democracia só pode funcionar se surgem críticas e demandas da
sociedade, que sempre foram transmitidas e refletidas pelo quarto poder.
Quando este não cumpre sua função, a coisa pública começa a decair.
Por isso, algumas fundações
criaram o jornalismo sem fins lucrativos. Uma fundação dos Estados
Unidos propôs-se a funcionar como um comitê de redação. Pede aos
jornalistas que lhe sugiram temas de investigação, isso seria
inadmissíveis em seus jornais. Quando chegam as propostas, a fundação
seleciona e financia investigações que considera mais adequadas e mais
tarde as difunde, através dos meios. Existem somente há quatro anos e já
ganharam dois premios Pulitzer. Quero dizer que a sociedade começa a
produzir os elementos que compensam a decadência do jornalismo de
mercado. Mas as velhas leis do jornalismo, como a checagem da informação
e o rigor, continuam válidas.
Estive em encontros de rádios
comunitárias, de blogueiros, de contrainformação. Têm a grande riqueza
do que vem do terreno, onde palpita a vida cotidiana. São muito mais
interessantes quando narram a vida que os outros não veem, do que quando
editorializam. Essa riqueza extraordinária pode ir do local a uma
escala mais ampla, porque há experiências que, ainda sejam locais,
interessam a qualquer ser humano, em qualquer lugar.
O bom jornalista não editorializa seus textos? Ou o faz através da voz dos outros?
Acho que só se deve
editorializar a partir de fatos concretos. Essa é a qualidade de um bom
editorialista: estabelecer conexões entre fatos que, em princípio, não
estão relacionados. A primeira função do jornalista é dar informação. A
partir daí, deve-se construir cidadania, difundir materiais que vão
permitir aos cidadãos como sujeitos, ser mais dignos.
Apesar
de um tom pessimista, em alguns de seus últimos trabalhos você assinala
que o jornalismo do futuro é aquele que ajuda as pessoas a compreender o
que acontece. A mente pensa com ideias, não com informação…
Há vários estilos jornalísticos.
Acredito que a reportagem é insubstituível e há excelentes repórteres
com a qualidade de texto que este gênero requer. Além disso, há a
investigação, a análise econômica e geopolítica; mas no fundo trata-se
de ajudar a compreender uma realidade em mudanças. Tecido e texto têm a
mesma raiz epistemológica, um texto é um tecido. Os jornalistas têm que
tecer textos para propor uma visão que permita a cada cidadão situar-se
dentro de um contexto e saber qual é a sua função no relato coletivo.
É caso do jornal alemão Die
Zeit: muito denso, com muita letra, textos difíceis, e ainda assim é o
grande êxito da imprensa europeia dos últimos anos. Seguiu um pouco o
caminho do Le Monde Diplomatique, porque é necessário recordar que
vivemos nas sociedades mais educadas da história. Nunca houve tantos
estudantes, tantos universitários, mas, ao mesmo tempo, a informação
degradou-se e envelheceu, com uma enorme confusão entre informação e
distração. Isso não pode satisfazer pessoas inquietas, que foram
educadas e são exigentes, o que as leva a buscar informação de
qualidade.
O diário mexicano La Jornada também creceu por esses mesmos motivos. Compreender o caos atual motiva e mobiliza muita gente.
Só encontraremos o fio de
Ariadne para sair do caos atual refletindo em conjunto. Neste caminho,
um jornalismo como o que mencionamos terá um papel relevante.
E é um contra-modelo, diante da mídia que coloca a informação nos espaços que a publicidade não ocupa…
É muito triste comprovar que
muitas publicações tornaram-se dependentes da publicidade, o que
falsifica a informação oferecida. O jornalismo de qualidade deve
preocupar-se com a autonomia financeira e para isso deve-se associar os
leitores ao veículo.
Estamos
diante de um desafio geracional muito forte. No mundo da internet,
surgem criadores de 12 e 13 anos que são capazes de fazer programas
inovadores. O que te sugere a emergência dessas novas geracões?
É uma lição de humildade para os
velhos jornalistas. Essas gerações são as que estão transformando as
tecnologias e nos colocam diante de um desafio de escrever pensando em
pessoas que não conheceram certas coisas. Devemos escrever pensando
neles, recorrendo a referências que os atraiam. Não podemos fazer um
jornalismo para entendidos, porque agora todos podem ser jornalistas e
isso nos coloca em um lugar novo. Antes as observações só vinham de
cima, agora qualquer leitor pode intervir e te questionar.
*Ignacio Ramonet é jornalista, editor do Le Monde Diplomatique, edição espanhola, e presidente da rede Memória das Lutas – Medelu
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