A base de toda sociedade democrática é a informação. Sobre a base da informação, formam-se os conceitos. Dos conceitos nascem os pactos. Os pactos se consolidam em leis. Das leis, derivam os contratos. É esse ciclo que garante a convivência civilizada de opostos, as eleições, a alternância de poder e a construção da democracia, impedindo abusos, selvageria.
Essa é a expressão final do termo segurança jurídica.
Hoje em dia, vive-se um estado de exceção no país, porque esta cadeia foi corrompida. A corrupção de informações e conceitos tornou-se tão ampla e disseminada, que criou-se um novo normal jurídico, onde a exceção tornou-se regra.
Ponto de partida - a era dos factoides soltos
A primeira trinca no sistema de informações ocorreu com o pacto entre os grupos de mídia, proposto por Roberto Civita, da Editora Abril, inspirando-se no australiano-americano Rupert Murdock.
Os princípios do pacto eram a formação do cartel e, sem contraditório, a disseminação de todo tipo de factoide, de notícias falsas, por mais inverossímeis que fossem, acreditando no poder sempiterno da repetição.
Ali encerrou-se um ciclo de mídia em que houve relativa competição entre os veículos, relativo respeito à informação, relativo acatamento das teses legitimadoras, impedindo a disseminação de notícias falsas.
Sem o apoio de uma fonte diária de fatos, o modelo era alimentado pela parceria com organizações criminosas, como a de Carlinhos Cachoeira, com a indústria de dossiês associada, que emerge com o caso Lunus de José Serra e que torna-se elemento central da disputa política brasileira.
As eleições de 2006 e 2010 marcaram o coroamento dessa excrescência. A busca de factoides a qualquer preço gerou as peças símbolos do período: a escandalização da tapioca comprada com um cartão corporativo pelo Ministro dos Esportes Orlando Silva. Ou a denúncia de que um servidor da Casa Civil havia comprado os serviços de vinte bailarinas – e bailarina era um tipo de vaso ornamental para flores.
Segundo passo - o julgamento do mensalão.
Com o mensalão, o sistema ganha musculatura, porque o julgamento passou a garantir um fluxo continuado de fatos com viés claro.
A ênfase inicial no julgamento deveu-se à tática de competir com a geração de fatos da CPMI de Carlinhos Cachoeira – que expunha as parcerias da mídia com organizações criminosas.
Em pouco tempo o fato AP 470 se sobrepôs ao fato CPMI de Cachoeira. E a mídia descobriu a eficácia da parceria com o sistema judicial, explorando episódios que garantissem um fluxo diário de fatos.
Ali houve a primeira contaminação, a primeira quebra grave no sistema judicial, fundando-se em uma notícia falsa como peça central de um julgamento relevante.
Esqueça-se o petismo e o antipetismo, as polêmicas em torno de José Dirceu, a malandragem pouco sutil de Pizolatto, e concentre-se no fato: todo o julgamento baseou-se em uma informação falsa: o desvio de R$ 75 milhões da Visanet. Os próprios funcionários do Banco do Brasil - que detestavam Pizolatto - asseguraram que jamais ocorreu o tal desvio.
Posteriormente, a Lava Jato escancarou o gigantesco processo de propinas da Petrobras. Mas a AP 470 se baseou em uma mentira.
A informação falsa foi a peça central da acusação, aventada pelo Procurador Geral Antônio Fernando de Souza, endossada pelo grupo de procuradores que trabalhou no processo e acatada pelo ex-procurador Ministro Joaquim Barbosa e pelo pleno do Supremo.
Como foi possível um fato de tal gravidade ter sobrevivido à tantos filtros? E como foi possível deixar de lado o laudo da Polícia Federal sustentando que a maior parte dos recursos de Marcos Valério foi bancado pelo grupo Opportuniy, do banqueiro Daniel Dantas?
Ali ficou claro que a Corte Maior havia se rendido às paixões políticas. E as análises colegiadas não serviam de filtro às narrativas do Procurador Geral. Pouco depois de deixar a PGR, aliás, Antônio Fernando assumiu um escritório de advocacia que conquistou um mega-contrato da Brasil Telecom, de Dantas.
Dali em diante, todo o sistema de informações do país entrou em curto-circuito. Mídia, partidos políticos, agentes do Estado, juízes passaram a tratar o fato de forma utilitária, adaptando-o às suas preferências partidárias, adulterando-o se necessário através do recurso da manipulação de ênfases e de interpretações.
Antes, à falta de fluxo constante de notícias, os grupos de mídia esfalfavam-se em factoides sem nenhuma verossimilhança. Com o julgamento do mensalão, descobriu-se o que os golpistas de 1954 sabiam: a base de toda ação desestabilizadora consiste em um evento, com geração diária de fatos e com o controle das versões pelos grupos hegemônicos de mídia. Foi assim na CPI da Última Hora, com Vargas. Foi assim na AP 470.
Terceiro passo - A campanha negativa a partir de 2012.
Valeram-se desde as falsas ênfases (enfatizar o fato negativo irrelevante para ocultar o positivo relevante) até as falsificações de notícias. No dia da inauguração da arena do Corinthians, a manchete de um jornal foi sobre a falta de sabonete nas pias do banheiro.
Ora, nos Estados Unidos houve o fenômeno mãe, o caso FoxNews, de Murdock. Mas as instituições dispunham de anticorpos, seja no jornalismo referencial de outros veículos, como o New York Times, seja no próprio processo de formação de opinião do Parlamento e do Judiciário. No Brasil todos os grandes veículos embarcaram no mesmo jogo do antijornalismo.
O grande problema foi quando o desvirtuamento das informações atingiu o sistema jurídico. Não apenas os fatos, mas os conceitos passaram a ser deturpados. E a parcialidade da Justiça abriu sua bocarra, através de Gilmar Mendes.
Quarto passo - o fator Gilmar Mendes.
Nenhum outro personagem foi tão daninho à ordem jurídica e ao sistema de informações quanto Gilmar Mendes. No início, meio sutil, depois escancarando sua parcialidade, mostrou seguidamente à opinião pública que a lei, ora a lei, é apenas um instrumento para legitimar a vontade do julgador. Vai perder uma votação? Basta pedir vista por tempo indeterminado. É "inimigo"? O peso da condenação. É "aliado"? A defesa por todos os meios, jurídicos e jornalísticos. O mesmo garantista que interrompeu a Satiagraha se tornou o mais iracundo acusador em operações contra “inimigos”.
A parcialidade criou uma pedagogia negativa, para o público uma demonstração da parcialidade do julgador, abrindo campo para que outros operadores da lei - juiz, procurador ou delegado -- passassem a exercer o subjetivismo em favor de suas preferências pessoais.
Quinto passo - a Lava Jato
Chega-se, finalmente, ao ápice desse modelo na Lava Jato, com o uso disseminado dos vazamentos, praticados em inquéritos sob sigilo em Curitiba, na Procuradoria Geral da República e no Supremo Tribunal Federal, devidamente amarrados com a agenda do impeachment.
Nesse momentos, instaura-se o novo normal. Não interessam as coletas de provas, indícios, evidências: vale a versão publicada. Não interessa o processo jurídico: vale o julgamento midiático. Todos os vazamentos têm objetivos políticos claros e exibição de músculos por parte de seus autores. E abandona-se definitivamente a presunção da isenção para perseguições políticas ostensivas.
Sexto passo – a campanha do impeachment
A campanha do impeachment é mera consequência dos passos anteriores. E se tornou a comprovação mais acabada do desvirtuamento de fatos e de conceitos.
Agora não são mais procuradores e delegados transformados em editores de jornais, nem deputados paleolíticos com seus gritos guturais e seus rituais selvagens. São também juristas, Ministros do STF, ex-presidente que aderem ao jogo, ou se eximindo ou assumindo de público a constitucionalidade do golpe, em um momento em que todos os fatos são transmitidos em tempo real para o mundo. Por seis decretos de remanejamento de despesas, jogam-se no lixo 54 milhões de votos e assumem interinos, sem mandato popular, comportando-se como conquistadores espanhóis empenhados em destruir a civilização anterior.
É nesse momento que o processo de desconstrução dos fatos, de livre criação de narrativas, ainda que inverossímeis, definem a nova cara institucional do país, o novo normal, trazendo de volta o fantasma da insegurança jurídica.
A reação instintiva das ruas
E aí ocorre um fenômeno interessantíssimo.
Em que pese todo fogo de barragem dos grupos de mídia, todo o poder de disseminação de versões, de boatos, de factoides, a narrativa do impeachment constitucional não pegou.
Agora, nas ruas, não estão mais as massas tangidas por um sentimento difuso de descontentamento com a crise política, com a falta de perspectivas e com os erros da presidente.
Os manifestantes não são meramente petistas, movimentos sociais, mas também grupos dos mais distintos, segmentos dos mais diversos que entenderam, seja pelos debates na Internet, seja por intuição, a importância da legalidade, do cumprimento das leis, da Constituição, os riscos de retrocesso, muito mais do que a erudição sem consequências de Ministros do Supremo, a exibição de músculos do Procurador Geral, o sebastianismo de procuradores evangélicos e a truculência de delegados barras-pesadas, todos armados até os dentes com instrumentos de poder de Estado.
É essa a grande batalha nacional, onde Dilma ou Temer se tornaram símbolos, muito mais do que protagonistas. Fora do poder, Dilma ganhou uma dimensão simbólica que jamais teve antes em seus tempos de presidente, nem quando gozava de índices elevados de popularidade, muito menos quando atropelou as esperanças populares, após as eleições de 2014.
A batalha do impeachment tornou-se definitivamente a luta da civilização contra a barbárie, dos fatos contra as manipulações, da democracia, ainda que imperfeita, contra o assalto ao poder.
E, dessa avalanche, surge finalmente o melhor do Brasil: a moçada que descobriu a nova política, não mais atrelada a partidos, mas a bandeiras.
O Brasil moderno está em plena efervescência. Não sei se a ponto de derrubar o castelo de manipulações erigido nos últimos anos, mas certamente para confrontar o atraso em um ponto qualquer do futuro.
Publicado em: http://jornalggn.com.br/
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