Rachel Moreno
Num fenômeno ímpar temos, pela primeira vez, a chance real de eleger uma mulher à presidência do Brasil. E, no entanto, as mulheres hesitam e as feministas se resguardam e polemizam em torno de uma única questão, esquecendo do quanto a nossa pauta é ampla e transversal.
As mulheres, enquanto eleitorado em geral, tendem a retardar a sua decisão de voto. Querem ter certeza da sinceridade dos candidatos, querem se situar melhor, olhar nos olhos do interlocutor – mesmo que seja através da TV – e entender a sua alma, antes de se decidir.
Historicamente, as que têm a sua vida mais restrita aos cuidados da casa têm no fim se fiado mais na opinião dos mais próximos, que podem lhe parecer mais informados – o marido, os filhos - seguindo-lhes a tendência do voto, numa postura mais conservadora.
Mas as mulheres com vida econômica ativa, que romperam com as estruturas de submissão e ganharam maior autonomia, têm historicamente votado mais à esquerda do que o resto do eleitorado.
De modo que o voto das mulheres não é uniforme – as mulheres não são todas iguais, mesmo no voto.
Tivemos duas mulheres disputando a eleição no primeiro turno. Temos uma, neste segundo turno.
Como não são muitas as mulheres disputando o poder, qual a imagem adequada a estas pioneiras? E qual a reação a esta imagem apresentada?
No primeiro turno, Dilma Rousseff foi tratada com o cinismo característico que a mídia tem reservado às mulheres, tratamento do qual, estranhamente (ou não) a Marina Silva foi poupada.
O período de tratamento de saúde da Dilma serviu de prato do dia enquanto foi possível a mídia esticar o assunto e os temores. Depois, o seu visual, cabelo, aparência, eventuais mudanças de estilo de vestir, todos os detalhes foram objeto de comentário, como se estivéssemos numa espécie de Brasil Fashion Week. Falou-se mais da aparência da Dilma, do que da mulher-pera, da mulher-melão e de outras tantas frutas que salpicaram o cardápio destas eleições.
Finalmente, a sua postura foi à berlinda. Ora como mulher-frágil, fantoche do presidente Lula, que continuaria a controlá-la a seu bel-prazer, ora como mulher intolerante, arrogante, forte demais para uma simples mulher. E a mídia se divertiu.
Já, neste segundo turno, eles decidiram ignorar solenemente o fato da Dilma ser mulher. O silêncio chega a ser ensurdecedor e ostensivo, depois de tanto ti-ti-ti. A que se deve?
Uma mulher disputando um cargo de poder cria expectativas no eleitorado feminino. E, nesta eleição, as mulheres são a maioria do eleitorado.
As mulheres têm uma reserva de credibilidade junto aos eleitores em geral, que lhes atribuem honestidade e capacidade de administração, a partir de sua visão doméstica. As eleitoras tendem a ver nelas uma sensibilidade maior às múltiplas questões e aspectos cotidianos da vida – cujo cuidado lhes cabe – e que tendem a não constar do discurso dos políticos, salvo em algum programa de última hora em que, ao som de uma música suave, desfilam mulheres de ar angelical, todas grávidas e sonhadoras, reduzidas à dimensão de barriga-e-sorriso com a promessa de cuidados do candidato – chega a parecer o pai da criança!
Este ano, as mulheres grávidas em êxtase apareceram mais cedo num programa eleitoral do Serra.
Dilma arriscou-se a incorporar a reivindicação do segmento mais avançado das mulheres, incluindo a questão do aborto como problema de saúde pública.
O segmento mais conservador, pastoreado por alguns sacerdotes e pastores evangélicos, reagiu à perspectiva de avanço com discursos nas missas e alguns cartazes inflando a ameaça à beira do ridículo (Dilma aprovaria o aborto até o nono mês!!!). Mônica Serra reforçou os argumentos acusando a Dilma de “matar criançinhas” – ela que, há alguns anos atrás, teria pessoalmente recorrido ao aborto, como revela a Folha de São Paulo!
Do cardápio deste segmento dos evangélicos, constou ainda o casamento e adoção de crianças por casais homoafetivos. Só faltou a condenação ao uso do preservativo como obra do diabo!
A oposição a Dilma no mínimo viu nisso uma chance de aumentar o alcance da mídia com que tem contado, com a penetração mais popular das missas. E vimos recentemente a descoberta de uma gráfica de uma filiada importante do PSDB, reimprimindo uma quantidade enorme do mesmo cartaz, cuja autoria parte do clero contesta.
Diante da perda de votos ao fim do primeiro turno, Dilma se reposicionou. Pessoalmente, acho que ela não soube se colocar de modo a sair da armadilha que lhe armaram, sem desgaste de nenhum lado.
As feministas têm feito de seu retrocesso um cavalo de batalha, e só discutem este aspecto. Se indignam e caem na armadilha – requentando um prato que já esfriou, e deixando de olhar para o banquete de idéias que lhes é oferecido.
E Dilma apanha pela direita e pela esquerda, nesta questão, enquanto o Serra passa incólume... e fatura os votos.
Se as feministas não abrirem espaço para a discussão do programa da candidata, da comparação dos dois lados, se ignoramos as diferenças, a conjuntura, o nosso papel e nos limitamos a protestar contra a Dilma, em função de uma questão que ela não tem como encabeçar, perderemos o bonde da história.
É só isso que as mulheres querem? E as creches? E o acesso ao emprego? E a geração de emprego? E a moradia, que o “Minha Casa, Minha Vida” facilita às mulheres chefes-de-família? E o acesso à riqueza? E a possibilidade mais concreta de estudar, de fazer uma faculdade? E a questão de desenvolvimento sustentável? E a política econômica? E as relações internacionais? E tantas coisas mais, que também nos dizem respeito, e que não estamos discutindo...?
O nosso posicionamento mais formal deveria ser muito mais amplo do que só a discussão do aborto. Nossa questão – a questão de gênero - é transversal, nossa vivência tem vários aspectos, nossas batalhas têm várias bandeiras. É só isso que temos em comum? É só disso que precisamos da candidata a Presidenta? É só isso que temos a apresentar à sociedade, neste momento e conjuntura?
Faço um convite à discussão do programa eleitoral da Dilma, pelas companheiras feministas. Faço um convite à reflexão e à produção de matérias que discutam a nossa pauta de reivindicações em toda a sua plenitude. Muitas saberão fazê-lo com brilho.
Ela passa pela comparação, por um lado, do avanço conseguido com a criação da Secretaria da Mulher, com a Lei Maria da Penha e os recursos para sua melhor implantação no Enfrentamento á Violência de Gênero, nos recursos extensivos à mulher do agricultor familiar (Pronaf) e do pescador, na hora do defeso; no acesso gratuito e fácil aos preservativos na rede de saúde; no avanço que representou o ProUni para o nosso acesso às universidades; na ampliação do espaço e atendimento das reivindicações dos negros; na inclusão social através da política de estímulo ao consumo e criação de empregos; na Bolsa Família, na realização de Conferências da Mulher e na inclusão de nossas reivindicações nas políticas de governo.
Do outro lado, temos a denunciar a resistência e demora do Serra em assinar o Pacto de Enfrentamento da Violência contra a Mulher (que oferecia recursos federais para o Estado); a total falta de investimento do governo PSDB paulista nas políticas de gênero (vide tese de mestrado de A. Fernandes).
Hoje, temos ainda a reivindicar mais creches e escolas em período integral para as crianças, maior qualidade do ensino e mais funcionários nas escolas, com a devida valorização salarial e de formação dos professores. Temos a reivindicar a equiparação salarial das mulheres; o acesso maior e a efetiva equidade no mercado de trabalho; a Reforma Política que nos dê condições de igualdade, uma imagem respeitosa, diversa e plural na mídia; etc. etc. etc.
Vamos pois à discussão e divulgação do programa da Dilma e de nosso interesse múltiplo e transversal nele! O que já não consta do programa, conquistaremos na rua. Temos o desafio e a oportunidade de eleger a primeira mulher presidente deste país – tarefa que demanda o nosso esforço e participação, e que abre as portas para a realização de muitas de nossas aspirações e sonhos. Vamos à Dilma presidente!
SP, 18/10/2010
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