quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

“A Itália é o laboratório do totalitarismo moderno”

Crescem a xenofobia e o racismo e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente europeu. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei. Aboliram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela. A análise é de Stefano Rodotà, professor de Direito Civil na Universidade de La Sapienza, Roma.

Expoente do laicismo, da democracia e do senso comum, Stefano Rodotà é um homem deliciosamente amável. Conhecedor do direito, comprometido desde há muito, e herdeiro do ativismo de Pasolini, é talvez um dos últimos humanistas europeus e um dos poucos intelectuais de referência que restam nesta Itália “triste e corrompida, que só olha o próprio umbigo e parece cada vez mais um apêndice do Vaticano, agora que se aproxima dos 150 anos da unidade do país”. Miguel Mora o entrevistou para o El País.

Professor emérito de Direito Civil na Universidade de La Sapienza de Roma, Rodotà, nascido em Cosenza há 73 anos, escreve livros e artigos, assiste a Congressos, dirige o Festival de Direito de Piacenza, promove manifestos e milita por um número sem fim de causas, da liberdade de imprensa à ética pública e à eutanásia.

Eleito deputado pelo Partido Comunista Italiano em 1979, viveu a década de convulsão do final da Primeira República no Parlamento e depois foi o primeiro presidente do Partido Democrátido da Esquerda (PDS), fundado em 1991 por Achille Occhetto, a partir das cinzas do PCI. Só um ano depois, talvez profetizando o que se avizinhava, abandonou a política.

Hoje ensina em universidades de todo o mundo, como especialista em filosofía do direito e coautor da Carta Fundamental de Direitos da União Européia, a “tábua” de medir liberdades individuais, novos direitos, qualidade democrática e abuso de poder. Seus textos sobre a relação entre direito e privacidade, tecnologia, trabalho, informação e religião são considerados clássicos.

Agora, Trotta acaba de traduzir seu livro A Vida e as Regras: Entre o direito e o Não Direito, um ensaio de 2006 ampliado em 2009, no qual Rodotà reestabelece os limites do direito e reivindica um novo, “mais sóbrio e respeitoso com as múltiplas e novas formas de que a vida humana adquiriu”.

O professor denuncia a tirania que os novos papas da lei tratam de impor aos cidadãos: a casta de “notáveis” que formam juristas e advogados, os grandes despachos internacionais que “criam as regras do direito global a mando das multinacionais”, os “legisladores invisíveis que sequestram o instrumento jurídico, transformando uma mediação técnica em uma atitude sacerdotal”.

O livro traça uma crítica pós-marxista da selva de ataduras legais que freiam as liberdades trazidas pelas inovações técnicas e científicas. Partindo de Montaigne ("a vida é um movimento desigual, irregular e multiforme"), Rodotá explica como o "evangelho do mercado", o poder político e a religião coproduziram "uma mercantilização do direito que abre caminho até para negociar os direitos fundamentais”, em caso de assuntos tão díspares, como a imigração, as técnicas de fertilização ou os avanços da biologia.

Para Rodotà, essa lógica mercantil e invasiva é “radicalmente contraditória com a centralidade da liberdade e da dignidade”, e a privatização da legalidade num mundo global cria enormes desigualdades, paraísos e infernos, “lugares onde se criam novos direitos e outros onde o legislador pretende adonar-se da vida das pessoas”.

“O paradoxo é que esta disparidade, que em teoria ajuda a ampliar a consciência da igualdade pelo mundo, pode consagrar uma nova cidadania censitária”, explica. “Se se legisla sobre os genes, o corpo, a dor, a vida, o descanso ou o trabalho, aplicando a repressão, a arrogância e a técnica empresarial do deslocamento, as liberdades se convertem em mercadorias e somente aqueles que possam se permitir a pagar podem ter acesso a elas”.

Rodotà cita por exemplo as leis sobre os matrimônios homossessexuais ou a reprodução assistida, “que na Itália criaram um fluxo de turistas do direito oriundos de países como a Espanha e outros menos certos, como Eslovênia ou Albânia". E, no lado oposto, “os paraísos fiscais e os países que menos respeitam os direitos do trabalho ou a legislação ambiental, dessa forma capturando empresas e milionários".

A grande diretriz, afirma nesta entrevista, é “sair do direito e regressar à vida”. Ou, como afirma no prólogo do livro o profesor José Luis Piñar Mañas, "vincular vida e direito, direito e pessoa, pessoa e liberdade, liberdade e dignidade; pôr o direito a serviço do ser humano, e não do poder”.

A ENTREVISTA

Não é paradoxal que um jurista alerte contra os excessos do direito?

Rodotà: Bom, o maior paradoxo é que o direito, que deve ser apenas uma mediação sóbria e sensata, converta-se numa arma prepotente e pretenda apropriar-se da vida das pessoas. Esta nova tendência está muito ligada às inovações científicas e tecnológicas. Antes, nascíamos de uma só maneira; desde que Robert Edwards, o reluzente prêmio Nobel inventou o bebê de proveta, as regras do jogo mudaram e a lei natural não é governada apenas pela procriação natural. Há outras oportunidades de escolher e surge o problema: o direito deve atuar nesta área? Até que ponto? Às vezes, sua pretensão é meter a ciência numa jaula, opor o direito a direitos, usar o direito para negar liberdades. Isso é lícito? Às vezes pode parecer que sim, é, como no caso da clonagem.

E outras vezes?

Rodotà: Ao meu juízo, o direito deve intervir, mas sem arrogância, sem prepotência, sem abusar, deixando as pessoas decidirem de forma livre e consciente. O caso de Eluana Englaro é um exemplo palpável do uso prepotente da lei, e além disso, do atraso cultural e político italianos. O poder e a igreja decidiram, contra o que afirma a Constituição sobre o direito inalienável das pessoas a sua dignidade e a sua saúde, que era preciso atuar para limitar a dignidade dessa mulher sem vida cerebral e o direito de seu pai a decidir por ela. O problema não é só a forçação de barra autoritária do poder político, mas o desafio insensato à norma soberana, a Constituição, e a colaboração da igreja nesse ataque.

A Igreja também odeia as células tronco. Mas a fecundação assistida foi proibida na Itália num referendum.

Rodotà: Algumas inovações científicas põem em jogo a antropologia profunda do ser humano. O uso e o descarte de varios embriões nas técnicas de fertilidade é uma delas. O direito deve acompanhar essas mudanças, não bloqueá-las. Os cientistas pedem regras para saber se seus avanços são moral ou socialmente aceitáveis. Um uso prepotente da lei limita suas investigações, nega o seu avanço e, ao fazê-lo, apodera-se de nossas vidas, porque nos nega todo direito, ou pior ainda, nega-o só a alguns. Os ricos italianos podem ir para a Espanha fazer fertilização in vitro, os pobres, não. Isso produz uma cidadania censitária e destrói o estado social. A vida vem antes da política e do direito.

A Itália atual está submetida ao fundamentalismo católico?

Rodotà: A Itália é um laboratório do totalitarismo moderno. O poder, ao abusar do direito, privatizá-lo e tratá-lo como mercadoria, dá asas ao fundamentalismo político e religioso, e isso mina a democracia. Os bispos italianos não admitem testamento biológico; os alemães propuseram um texto mais avançado que a esquerda italiana. Quando se cumpriu um ano da morte de Eluana, Berlusconi escreveu uma carta às monjas que cuidaram dela, dizendo que estava muito triste por não ter podido salvar-lhe a vida. Admitiu publicamente que o poder havia tratado de adonar-se de sua vida. Agora, acaba de apresentar um Plano pela Vida à igreja. Com o objetivo de angariar seu apoio para seguir governando, Berlusconi vendeu o Estado de direito ao Vaticano, por quatro tostões.

E os homossexuais seguem sem direitos. E os laicos cada vez apitam menos.

Rodotà: O Tribunal Constitucional já disse que se deve reconhecer o casamento gay. A Carta de Direitos da UE também é muito clara. Necessitamos de um direito amável, não de um direito que negue os direitos. A religião não pode domar a liberdade. A Constituição de 1948, artigo 32, diz que a lei não poderá, em caso algum, violar os limites impostos pelo respeito à vida humana. Ese artigo foi feito pensando nos experimentos nazis, sob a influência da comoção causada pelos processos dos médicos, em Nuremberg! E foi Aldo Moro que o fez, um político católico!

Você já pensou alguma vez em cerrar fileiras com a Democracia Cristã?

Rodotà: Aqueles políticos tinham outra envergadura cultural. As discussões parlamentares entre a DC [Democracia Cristã]e o PCI[Partido Comunista Italiano] eram de um nível impressionante. Com a DC governando, fizeram-se as leis do aborto e do divórcio. Sabiam que a sociedade e o feminismo as exigiam e entenderam que não admiti-lo causaria danos a sua credibilidade política. Muitos eram verdadeiramente laicos. Tinham mais sentido de medida e mais respeito. Hoje estamos no turismo para poder nascer e para poder morrer; as pessoas reservam quartos em hospitais suíços para morrerem com dignidade. É possível que um Estado democrático obrigue os seus cidadãos a pedir asilo político para morrer? O direito deve governar esses conflitos, não dar-lhes alento.

Rosa Luxemburgo dizia que atrás de cada dogma havia um negócio para cuidar.

Rodotà: Não tenho dúvida de que a saúde privada influi nas posições do Vaticano. Desde o Concílio tudo piorou, e hoje a Itália está sendo governada por movimentos como o Comunhão e Liberação, que fazem negócios fabulosos com a ajuda e a anuência do governo. A má política sempre é filha da má cultura. A degradação cultural é a chave do problema. Espero que o regime político de Berlusconi acabe o quanto antes possível, mas nos recuperarmos deste deserto cultural levará décadas. O uso da televisão, não só o partidário, mas o embrutecedor, a degeneração da linguagem…Tudo isso é menor. A degradação foi muito além do perímetro da centro direita, e vemos em todas as partes atitudes espetaculares como as de Berlusconi.

Tem gente pondo em discussão até os direitos sindicais.

Rodotà: O pensamento jurídico empobreceu muito. Nos anos setenta fizemos uma reforma radical do direito de familia, porque a cultura dos juristas e seu sentido democrático o permitiu. Fecharam os manicômios, fez-se o Estatuto dos Trabalhadores…Hoje tudo isso seria impensável.

A esquerda permanece impassível... Por que?

Rodotà: A recuperação da cultura é a primeira premissa para recuperar a política de esquerda. Todos dizem que se deve mirar o centro, eu acredito que se deve começar por recuperar a esquerda. Craxi destruiu a socialdemocracia, o PCI se suicidou e esse cataclisma ainda permanece. Temos perdido a primazia da liberdade e hoje o que manda é o uso personalista e autoritário das instituições. A sociedade se decompôs, o país está se desfazendo. A política faz uso ostensivo da força, e o direito se esfarela.

A Europa nos salvará?

Rodotà: Não parece que a Europa viva um momento esplêndido. Crescem a xenofobia e o racismo, e a debilidade cultural da Itália se expande pelo continente. Trono e altar se aliaram de novo, agora de maneira distinta. Hoje assistimos a uma fusão entre mercado, fé e política, que tratam de organizar nossas vidas, manipulando o direito. Na Itália, a corrupção não só não é perseguida, como está protegida pela lei, como no escândalo da Proteção Civil: derrogaram a transparência e os controles ordinários para poder roubar melhor. Nos anos setenta as comissões eram motivo de piada, e ainda assim havia compostura, um respeito pela coletividade. Craxi foi devastador, uma mudança de época. Agora, a máxima é: "Se Berlusconi faz, por que eu não vou fazer?”.

(*) Stefano Rodotà é ex–presidente da autoridade italiana defensora da proteção dos dados pessoais e ex–presidente, também, do Grupo do Artigo 29 sobre proteção de dados da União Européia.

Tradução: Katarina Peixoto

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