quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Eduardo Galeano

Eduardo Galeano: Ainda temos capacidade de loucura!

O escritor uruguaio se submeteu a perguntas enviadas pelos leitores da BBC. A entrevista é incrível e segue abaixo, na íntegra.


- Quais são os ingredientes que usa na sua vida para manter o entusiasmo e a felicidade? Deveríamos engarrafá-los e distribuí-los, mas com patente.
EG - Engarrafá-los, eu não posso, porque se evaporam facilmente. O que têm de bom é que retornam sempre, mesmo se às vezes parece que foram embora para sempre. Suponho que por gentileza de Deus ou do Diabo.

- Para quem você escreve? É possível pensar – nas palavras de Umberto Eco – em um leitor modelo?
EG – Eu escrevo para os amigos que ainda não conheço. Os que eu conheço já estão fartos de me escutar.

- Eu lhe digo que não tenho dinheiro para comprar livros e tampouco onde eu vivo tem livrarias que os vendam. Por isso não sei o que lhe perguntar. Só me ocorre o seguinte: o que você sente de tanto escrever e escrever, quando finalmente o mundo continua mais ou menos igual ou pior?
EG – A verdade é que nem eu mesmo me entendo. Eu escrevo para os que não podem me ler, porque os livros estão tão caros que daqui a pouco serão vendidos em joalherias. Mas isso sim, acredite, as palavras viajam caminhos misteriosos e andam por onde elas querem, sem pedir autorização.

- De que equipe de futebol você é torcedor (No Uruguai e no mundo)?
EG – Eu ainda sou torcedor do Nacional, aqui no Uruguai, o clube dos meus amores desde minha mais tenra infância, mas sobretudo sou torcedor do bom futebol e quando esse milagre acontece, eu o agradeço sem olhar a cor da camiseta. E se o bom futebol provem de um clube pequeno, quase desconhecido, então melhor ainda.

- Alguma vez você disse que cai e levanta várias vezes ao dia. Eu não se como me levantar. Como você faz?
EG - Pode te parecer uma besteira, mas eu te juro o que eu penso: se eu caio, é porque eu estava caminhando. E andar vale a pena, mesmo se a gente cai. Eu sou caminhante, na beira do rio a que chamamos mar, aqui em Montevideu, caminho horas e horas, e as palavras caminham dentro de mim e comigo. Às vezes elas se vão e me custa muito seguir sozinho, sem elas.

- O que é a vida para você, em uma única palavra?
EG – Em quatro palavras, não em uma: uma caixa de surpresas.

- Com o que você sonha? Você tem um sonho reiterado?
EG – Meus sonhos são de uma mediocridade inconfessável. Os que mais se repetem são os mais estúpido, eu perco um avião, discuto com um burocrata, coisas assim. Que feio, não? Eu me consolo recordando aqueles versos de Pedro Salinas que dizem que: “os sonhos são verdadeiros sonhos quando se desensonham e em matéria moral encarnam”.

- Você escreve tomando mate?
EG – Não, eu já não tomo mate. Tive que parar, há anos, como deixei também o cigarro, que tanto me acompanhou durante tanto tempo. Agora eu escrevo com cerveja ou algum outro trago. E enquanto eu escrevo, falo sozinho, em voz alta. Quem me vê de longe pensa que eu sou um bêbado perdido. Perdido eu sou, talvez, não sei; mas bêbado, não. Eu gosto de beber e por isso não me embebedo: o trago exige que não lhe faltem ao respeito.

- Por que as pessoas continuam acreditando em Deus? Você considera que essa crença atrasa o ser humano?
EG – Deus é o nome que nós damos à fé e por isso é múltipla, mesmo se muitos acreditem que a diversidade da fé é uma heresia digna de castigo.

- O que você opina do Prêmio Nobel recebido por Barack Obama? Como se justifica receber esse prêmio?
EG – Me pareceu uma piada de mau gosto. Mas não é nada raro, levando em conta que há um século o Prêmio Nobel da Paz foi concedido a Teddy Roosevelt, um apaixonado da guerra, que até escreveu um livro propondo a guerra como remédio para a covardia e a fraqueza dos machos no mundo.

- O que você acha do nacionalismo e do patriotismo? São bons ou criam mais problemas? São partes inseparáveis da identidade?
EG – Antes de que se inventasse essa palavra horrível, globalização, que designa a ditadura universal do dinheiro, existia outra, linda, generosa, a palavra internacionalismo. Eu continuo preferindo-a. Para mim, continua significando algo assim como que podemos ser compatriotas e contemporâneos de todos os que tenham vontade de justiça e vontade de beleza, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido onde tenham vivido, sem que importem nem um pouquinho as fronteiras do mapa, nem do tempo.

- Nossa América toda, tem possibilidades de se curar?
EG – Claro que sim. Não está tão doente, se a comparamos. Ainda temos, por exemplo, capacidade de loucura, que é o sintoma infalível da boa saúde.

- Eu gostaria de saber como você vê o século XXI. Com pessimismo? Com otimismo?
EG – Eu não acredito nos otimistas full-time. Esses são farsantes ou cegos. Eu sou otimista e também pessimista, conforme a hora e o dia, creio e descreio, celebro e lamento este tempo nosso e este mundo que nos toca viver. Cada tempo tem seu contratempo, é verdade, mas também é verdade que cada cara contem sua contracara. A contradição é o motor da vida: da vida humana e de todas as outras vidas.
Assumir isso me ajuda a não me arrepender das minhas tristezas, das minhas depressões, das minhas músicas ruins: elas são pares inseparáveis de mim. Não tenho mais talento do que aquele que provém da experiência; todo o trabalho que eu tenho todo dia perseguindo as palavras que fogem.

- Como você vê o mundo e o estado da sociedade atual? Você acredita que pode ficar de pé o mundo de cabeça pra baixo? O que você acha que faz falta para que se produza uma mudança transcendental em cada um dos habitantes deste planeta?
EG – Não sei, não creio nas fórmulas mágicas. Eu sei, simplesmente, por experiência, que vale a pena que a gente se una para lutar juntos pelas coisas em que vale a pena acreditar. Sós, sozinhos, pouco ou nada podemos fazer. Mais do que isso, eu te digo: não devemos desalentar-nos tão facilmente. Se as coisas não saem como a gente gostaria, bom, é preciso aprender a arte da paciência, é preciso aceitar que a realidade muda no ritmo que ela quer e não no que a gente decide que ela deva mudar. “Se a realidade não me obedece, não me merece”, dizem ou pelo menos acreditam alguns intelectuais. Eu não.”

- O que fazer diante do desânimo e da impotência depois de ler seus escritos? Que soluções você propõe diante da dominação e da exploração que sofremos sempre?
EG - Eu não vendo receitas da felicidade e te recomendo que não acredite nos bandidos que a vendem. Eu tampouco creio nos dogmáticos religiosos ou políticos que vendem certezas. Para mim, as únicas certezas dignas de fé são as que tomam café de dúvidas a cada manhã.

- Se você entrasse hoje numa máquina do tempo e ela o levasse cem anos para o futuro, o que acha que encontraria quando saísse dela?
EG - Não tenho a menor idéia, nem quero tê-la. Cada vez quem uma cigana se aproxima de mim e me pega a mão para ler o meu futuro, eu lhe peço que, por favor, não cometa essa crueldade. O melhor que tem o futuro é que tem muito mistério.

- O que é para você a esquerda? Por acaso essa dicotomia de esquerda contra direita não caducou na década de 70? Até quando o mal de muitos será culpa de uns poucos “malvados”? Até quando seguirá vendendo a vitimização como tática para a transformação social?
EG – A culpa é de todos, nos dizem os culpados de que as relações humanas tenham se envenenado e os culpados de que estejamos ficando sem planeta. Tinha razão dona Concepción Arenal, mulher luminosa, que se formou como advogada disfarçada de homem, com duplo corsê e teve a coragem de dizer o que os homens diziam, em meados do século XIX: “Se a culpa é de todos, não é de ninguém. Quem generaliza, absolve.”

- Estou de acordo com todos os males do capitalismo que o distinguido escritor coloca em destaque, mas e os males do socialismo? Qual seria a melhor via para um desenvolvimento mais humano?
EG – O século XX divorciou a justiça da liberdade. A metade do mundo sacrificou a justiça em nome da liberdade e a outra sacrificou a liberdade em nome da justiça. Essa foi a tragédia do século passado. O desfio do século atual consiste, acho eu, em unir a essas duas irmãs siamesas que foram obrigadas a viver separadas. A justiça e a liberdade querem viver bem pegadinhas.

- Como fazer que o mundo entenda a diferença entre a verdadeira esquerda, identificada com o povo, da demagoga, como a burocracia soviética ou a cubana?
EG – Cada um entende à seu modo e maneira, e age do seu modo e maneira. Eu sou muito respeitoso com as idéias e as vidas dos demais.

- Você não acha que as palavras “pobre” e “grátis” criaram uma mentalidade resignada nas pessoas deprimidas dado que, por esperar tudo grátis do “papai governo”, fazem muito pouco ou nada para superar suas condições de vida e preferem continuar vivendo na pobreza?
EG- A caridade pode produzir, as vezes, algo disso. A caridade é vertical, da esmola, semeia costumes ruins, como os folgados. Além disso, é humilhante. Como diz um provérbio africano, a mão que dá está sempre acima da mão que recebe. Mas as relações de solidariedade, que são horizontais, geram respostas completamente diferentes.

- Eu sempre me perguntei como você faz para encontrar combinações tão felizes de palavras, palavras que a gente escutou (e escreveu) centenas de vezes e que quando você as junta parecem um discurso novo.
EG – Muito obrigado pelo elogio. Eu só posso te dizer que nenhuma fada visitou meu berço. Eu não tenho mais talento do que o que provêm da experiência: o muito trabalho de cada dia é gasto perseguindo palavras que fogem.

- Há quase 40 anos de As veias abertas da América Latina, você pensou em escrever uma segunda parte?
EG – Na verdade todos escrevemos um único livro, que vai mudando e vai se multiplicando à medida que a vida vive e o escritor escreve. Para mim, As Veias Abertas foi um porto de partida, não um porto de chegada. Desde aí, eu acho, eu multipliquei minha visão do mundo.

Tradução: Emir Sader
        Extraido do site: http://www.patrialatina.com.br/

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