terça-feira, 18 de outubro de 2011

Tragédias na hora do almoço



Justiceiros arrastando um homem para a morte, com o som dos seus apelos desesperados pela vida, das ordens de atirar (e em que parte específica do corpo), dos tiros, das recomendações para crianças saírem de perto e finalmente as chamas consumindo a vítima. Pode haver algo mais escabroso para ser mostrado em qualquer horário?

(*) Artigo publicado originalmente na Revista do Brasil, edição de outubro de 2011.

Muita gente ainda almoça em casa no Brasil, embora o hábito venha diminuindo nos últimos anos por conta das dificuldades cada vez maiores de deslocamento em quase todas as cidades.

Mas além dos que trabalham fora e ainda têm essa possibilidade há crianças, jovens, idosos, donas de casa e pessoas com outros tipos de afazeres que seguem almoçando em casa todos os dias.

Sem dúvida, um privilégio. Salvo por um pequeno senão: a TV ligada nesse horário. Na tela, muitas cenas são incompatíveis com uma refeição saudável. 

Por exemplo: justiceiros arrastando um homem para a morte, com o som dos seus apelos desesperados pela vida, das ordens de atirar (e em que parte específica do corpo), dos tiros, das recomendações para crianças saírem de perto e finalmente as chamas consumindo a vítima. 

Pode haver algo mais escabroso para ser mostrado em qualquer horário? Essas cenas foram exibidas perto do meio-dia no programa “Cardinot Aqui na Clube”, da TV Clube, afiliada da Bandeirantes em Recife. É apresentado por Josley Cardinot que tem contra ele uma ação na justiça por mostrar, anteriormente, conteúdos semelhantes no programa “Bronca Pesada”, então transmitido pelo canal local do SBT.

E não adianta mudar de estação. As diferenças entre os programas são muito pequenas. Um copia o outro. No caso de Pernambuco, na hora do almoço a TV Jornal (SBT) apresenta agora o “Plantão 190” e a TV Tribuna (Record) o “Ronda Geral”, também policialescos. 

Como se vê a frase "o melhor controle é o controle remoto" é um simples jogo de palavras para eximir os concessionários de canais de TV de suas responsabilidades éticas e sociais. Dá-se a eles uma liberdade absoluta, inexistente em qualquer outra atividade profissional.

Não se trata de censurar a informação sobre um grave fato policial mas de ressaltar a possibilidade de uma notícia como essa ser transmitida de forma menos agressiva. O telespectador tem o direito de ser informado sobre a execução cometida por justiceiros sem, no entanto, se submeter à violência das cenas exibidas. Ainda mais diante da constatação de que quando se liga a TV, nunca se sabe o que vem pela frente. E, para muitos, o susto é enorme. A TV não é como o jornal, cuja noção do que publica se sabe antes de comprá-lo. A TV entra em nossas casas sem pedir licença, basta apertar o botão. Dai a necessidade de um controle público mais rigoroso.

As respostas da sociedade a esse tipo de programa ainda são tímidas. No Recife, uma ação civil pública proposta pelo Ministério Público, a pedido de várias organizações de defesa dos direitos humanos contra o programa “Bronca Pesada”, arrasta-se há anos sem solução.

Agora, diante das imagens da execução de um homem, mostradas pela TV Clube, novas ações devem ser propostas. O Centro de Cultura Luiz Freire gravou as cenas e as exibiu para os deputados que integram a Frente Parlamentar da Comunicação do Estado, tentando sensibilizá-los para o problema.

Sem uma lei moderna que coíba esse tipo de abuso e de um órgão regulador com poderes para aplicá-la, como ocorre na Europa, restam poucas alternativas de resposta dos cidadãos às emissoras.

Até hoje apenas uma atingiu os efeitos desejados. A decisão judicial que tirou do ar, por 30 dias, o programa João Kleber, apresentado pela Rede TV. Em lugar das humilhações impostas principalmente a homossexuais, a emissora foi obrigada a transmitir no mesmo horário produções realizadas por entidades defensoras dos direitos humanos. A audiência, é bom frisar, não caiu, desmentido a afirmação repetida à exaustão de que o público gosta de baixarias.

Mas esse é um exemplo único. Muito pouco diante da quantidade de programas que, diariamente, em todo o país seguem contribuindo para a banalização da violência e a expansão da incivilidade.

Laurindo Lalo Leal Filho, sociólogo e jornalista, é professor de Jornalismo da ECA-USP. É autor, entre outros, de “A TV sob controle – A resposta da sociedade ao poder da televisão” (Summus Editorial). Twitter: @lalolealfilho.

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