“Há um retrocesso da solidariedade da classe
estruturada durante o período fordista, e um avanço de um projeto de
sociedade marcadamente individualista e neoliberal, um individualismo
esvaziado de solidariedade, profundamente marcado pela concorrência com
os diferentes atores”, diz o sociólogo.
Confira a entrevista. “As
políticas de austeridade derivam de uma tentativa de transferir o ônus
econômico para as classes trabalhadoras”, frisa o sociólogo
Ruy Braga,
ao comentar o desmantelamento do Estado de bem-estar social nos países
europeus que enfrentam a crise econômica. Segundo ele, para diminuir os
prejuízos do capital financeiro, o Estado nacional assume “ônus de
socializar as perdas entre as classes sociais subalternas”.
Na avaliação de
Braga, a
crise atual
é de natureza política e econômica e se manifesta de “forma mais ou
menos aguda desde meados da década de 1970”. Os pacotes de austeridade
impostos pela Tróika apontam para “a questão de que o capitalismo não é
capaz de resolver essa dupla contradição, ou seja, integrar os
trabalhadores e ao mesmo tempo protegê-los. Essa foi uma ilusão do
capitalismo pós-guerra, especialmente na Europa”, enfatiza o sociólogo
em entrevista concedida à
IHU On-Line por telefone.
A
solução da crise e a manutenção dos direitos sociais dependem do
resgate do internacionalismo. “É importante o pensamento de esquerda ter
presente que a crise portuguesa não será resolvida em Portugal, que a
crise espanhola não será resolvida na Espanha, que a crise italiana não
será resolvida na Itália, que a crise grega não será resolvida na
Grécia. O que se demanda efetivamente é uma unificação daqueles que se
colocam em posição flagrante contra esse projeto da ‘
Tróika’, de
política de austeridade
etc.”. E dispara: “Caso contrário, essas forças de esquerda irão se
perder na tentativa inócua de tentar solucionar problemas pontuais do
sistema, pensados do ponto de vista da administração política da crise
econômica”.
Ruy Braga (foto abaixo) é
especialista em Sociologia do Trabalho, e leciona no Departamento de
Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo - USP, onde coordenou o Centro de Estudos dos
Direitos da Cidadania - Cenedic. No mês de novembro deste ano Braga
lançará seu novo livro, intitulado
Política do precariado, pela editora Boitempo.
Confira a entrevista.
IHU
On-Line – Como o capital está se reestruturando diante da crise
financeira internacional? A luta de classes ainda se manifesta nessa
reestruturação?
Ruy Braga –
É importante destacar que o processo de reestruturação do capitalismo
ocorre desde os anos 1990 em escala global, que foi o período de largo
desenvolvimento das políticas neoliberais, de ajuste estrutural das
economias nacionais, de reestruturação produtiva e corporativa das
empresas, e o período que assistiu o colapso das economias do leste
Europeu.
Do ponto de vista do processo de
luta de classes
em nível internacional, essa reestruturação capitalista, que atende
pelo nome de mundialização do capital, tem uma dupla dimensão. A
primeira é estritamente política, que diz respeito ao rearranjo de poder
e força dos Estados-nação, em especial aquelas forças políticas que
dirigem ou dirigiram historicamente os diferentes aparelhos
governamentais, como a social democracia na Europa e algumas
experiências nacional-desenvolvimentistas na América Latina. Por outro
lado, tem-se uma reestruturação propriamente econômica, que articulou
tanto a mundialização das empresas como uma reestruturação produtiva,
que terceiriza, promove o avanço da tecnologia de informação, que
efetivamente globaliza a sua esfera de ação. Na articulação dessa dupla
dinâmica política e econômica as classes subalternas, em escala
internacional, dão um passo atrás na década de 1990 – esse é o período
do auge do neoliberalismo e do desmonte daquela forma de solidariedade
classista, que se identifica grosso modo com o operariado fordista na
Europa, na América Latina e nos EUA.
Então, há um retrocesso da
solidariedade da classe estruturada durante o período fordista, e um
avanço de um projeto de sociedade marcadamente individualista e
neoliberal,
um individualismo esvaziado de solidariedade, profundamente marcado
pela concorrência com os diferentes atores. Nesse contexto é que a luta
de classe retrocede na década de 1990. Entretanto, a partir de meados
desse período, início dos anos 2000, identifica-se alguns exemplos de
retomada do processo de reorganização das classes subalternas, em
especial no caso da greve do funcionalismo público francês, de 1995, e a
formação dos estados gerais, em 1998, o que imprime um ritmo distinto
no “desmanche” das classes subalternas em escala global.
Os anos
2000 foram marcados pela retomada da organização das classes
subalternas, que acabou empurrando o centro da dinâmica política
latino-americana para a esquerda. Nesse período foram eleitos vários
governos cunho frente popular, dentre os quais o mais famoso
evidentemente é o caso brasileiro, com a eleição do Lula em 2002, o que
abre um novo período dessa dinâmica de luta de classes. Em resumo, diria
que há avanços e recuos, progressos e retrocessos do ponto de vista das
classes. No entanto, o mais importante a se destacar é que o jogo ainda
está sendo jogado, ou seja, não existe uma palavra final para esse
contexto.
IHU On-Line – Após algumas décadas de avanços
na consolidação do Welfare State, o modelo de seguridade social está
ameaçado e constantemente reduzido pelos pacotes de austeridade dos
governos europeus. O que está acontecendo? Qual a raiz deste
desmantelamento social?
Ruy Braga – Novamente, é
importante destacar essa dupla dimensão econômica e política. Por um
lado, percebe-se economicamente o flagrante ataque às políticas de
bem-estar disferido pela “
Troika” (
FMI,
Banco Mundial e pela
Comissão Europeia),
os quais respondem evidentemente a uma exigência do capital europeu. Ou
seja, para que haja a possibilidade de diminuir os prejuízos do capital
financeiro europeu, é necessário que o Estado nacional assuma o ônus de
socializar as perdas entre as classes sociais subalternas. Então,
existe uma dinâmica econômica que se inscreve num período de longo
prazo. É uma crise que se estende de forma mais ou menos aguda desde
meados da década de 1970, e que hoje se manifesta de uma maneira mais
contundente do ponto de vista do endividamento de alguns países, em
especial países da semiperiferia capitalista europeia, como é o caso,
notoriamente, de
Portugal,
Espanha,
Itália e
Grécia.
Mas essa dinâmica da crise de endividamento, da impossibilidade de se
manter essa valorização do capital financeiro em escala continental e em
escala global, tem atingido também países do centro do capitalismo,
como é o caso da
Inglaterra e da
França.
Então, o capitalismo irá se estender numa crise econômica que está se
aprofundando, se tornando mais abrangente do ponto de vista geográfico.
Essa conjuntura coloca desafios para essas sociedades nacionais e,
evidentemente, os setores conservadores ligados diretamente ao capital
financeiro buscam transferir o ônus dessa crise, do prejuízo econômico,
para as classes trabalhadoras, as classes sociais subalternas.
As
políticas de austeridade basicamente derivam dessa dinâmica, uma
tentativa de transferir o ônus econômico para as classes trabalhadoras.
Evidentemente esse é um mecanismo político, ou seja, exige a integração
da política. Então, abre-se um período de flagrante luta de classes na
Europa, haja vista, por exemplo, as manifestações que têm ocorrido em
Portugal – as mais importantes manifestações da história portuguesa desde 25 de abril de 1974.
IHU
On-Line – Como o capitalismo transformou os ideais de igualdade,
universalização de direitos e bem estar social? Esses sonhos estão sendo
substituídos?
Ruy Braga – Principalmente o capitalismo
europeu e o modelo do Estado de bem estar social prometeram uma inclusão
dos setores mais pauperizados das classes subalternas, por intermédio
de políticas de bem-estar que garantissem o consumo, independentemente
do tempo de investimento na produção, do tempo de investimento econômico
nas empresas. Esse modelo também prometeu segurança para os
trabalhadores que já estavam inseridos no mercado de trabalho. Essa
dupla promessa está sendo literalmente negada, está sendo desmontada com
a dinâmica da crise atual. Isso aponta para a questão de que o
capitalismo não é capaz de resolver essa dupla contradição, ou seja,
integrar os trabalhadores e, ao mesmo tempo, protegê-los. Essa foi uma
ilusão do capitalismo pós-guerra, especialmente na Europa.
IHU
On-Line – Como compreender que diante de tantas conquistas materiais e
técnicas, especialmente no mundo do trabalho, ainda perduram a ameaça do
desemprego, a crescente insegurança e precariedade das novas ocupações,
a exclusão social?
Ruy Braga – O desemprego, a
insegurança e a incapacidade do sistema de proteger são dinâmicas do
capitalismo, isso é o DNA do capitalismo, porque esse modelo se apoia na
concorrência, na busca pelo lucro máximo. Então, é possível ter
histórica, circunstancial e regionalmente situações de proteção social,
mas elas serão rapidamente amesquinhadas diante da competição com outros
países. Por exemplo, basta identificar a entrada da
China
no jogo do capitalismo global. O preço da força de trabalho dos
trabalhadores chineses coloca pressão sob o preço da força de trabalho
dos trabalhadores franceses, alemães, ingleses, portugueses, americanos e
assim por diante, porque as empresas tendem a migrar para regiões que
pagam menor salário. Então, há uma dinâmica da concorrência que
progressivamente tende a erodir as conquistas vinculadas à proteção e à
inclusão social.
IHU On-Line – Diante da atual conjuntura, como é possível avaliar o projeto das esquerdas no mundo?
Ruy Braga – No caso europeu, é importante o pensamento de esquerda ter presente que a crise portuguesa não será resolvida em
Portugal, que a crise espanhola não será resolvida na Espanha, que a crise italiana não será resolvida na
Itália,
que a crise grega não será resolvida na Grécia. O que se demanda
efetivamente é uma unificação daqueles que se colocam em posição
flagrante contra esse projeto da “Tróika”, de política de austeridade
etc. Isso naturalmente demanda uma escala nova de articulação de lutas,
de solidariedade, que é exatamente uma escala internacional, que pode
ser, num primeiro momento, em escala regional, ou seja, uma dinâmica
propriamente europeia. Mas essa dinâmica não pode se limitar à Europa,
tem que se estender para outros países do mundo, para os Estados Unidos,
para a
América Latina,
e assim sucessivamente. Então, o primeiro valor que a esquerda precisa
resgatar, para efetivamente enfrentar essa conjuntura de crise, é o do
internacionalismo. Ele é imprescindível, é insubstituível para se
enfrentar a dinâmica da crise capitalista em escala global.
IHU On-Line – Por que a esquerda não conseguiu propor nada diferente e aderiu ao neoliberalismo?
Ruy Braga –
A esquerda propõe. Porém, o problema é que, na esfera dos governos, a
única coisa que se encontra é uma tentativa de fazer com que o
capitalismo funcione melhor, quando na verdade ele está colocado diante
de outro dilema. A própria crise ecológica nos coloca, como espécie
humana, dentro de outro dilema: como superar esse sistema que só oferece
crise, degradação social, destruição ambiental, ou seja, que não
satisfaz os interesses da humanidade. Então, tem que resgatar uma outra
dinâmica de ação, que é anticapitalista. Só com base nessa dinâmica
anticapitalista será possível avançar. Caso contrário, essas forças de
esquerda irão se perder na tentativa inócua de tentar solucionar
problemas pontuais do sistema, pensados do ponto de vista da
administração política da crise econômica. Quer dizer, isso vai esgotar
de fato as forças de esquerda. Isso não corresponde às reais
necessidades que a humanidade tem diante dos olhos.
IHU
On-Line – Quais os resquícios da tentativa de implementar o socialismo
no mundo? Esse modelo ainda tem relevância em algum país?
Ruy Braga –
O socialismo continua na ordem do discurso absolutamente urgente para a
humanidade; o problema é como chegar lá. Então, basicamente tem-se que
resgatar os valores do internacionalismo operário, dos trabalhadores;
tem-se que apostar na independência propriamente de classe, ou seja,
buscar construir a unidade entre os trabalhadores, apoiada em seus
programas, e que seja intransigente em relação aos governos e às
empresas. Tem-se que apostar em uma alternativa socialista, articular as
forças propriamente anticapitalistas numa frente unificada de ação;
tem-se que resgatar o caráter socialista nas lutas contra todas as
formas de opressão e de exploração; tem-se que incorporar as lutas
contra a opressão das mulheres, contra a dominação dos jovens, contra a
opressão racial, contra a discriminação por orientação sexual; tem-se
que incorporar o feminismo e a luta dos setores subalternos num amplo
projeto de transformação radical da sociedade, sem o qual nós vamos
ficar aí, enfim, enredados nessa trama da crise capitalista.
IHU
On-Line – Quais são as aproximações e as diferenças entre as esquerdas
da América Latina? O que as aproxima e o que as diferencia?
Ruy Braga –
A América Latina deu uma guinada à esquerda nos últimos quinze anos.
Isso é perceptível por intermédio da hegemonia que, por exemplo,
governos como o de
Hugo Chávez, o
lulismo aqui no Brasil,
Rafael Correa, no Equador, e
Evo Morales,
na Bolívia, representam diferentes faces desta reação ao projeto
neoliberal, dessa crise do neoliberalismo no continente, mas
evidentemente com as suas contradições e as suas diferenças.
No
caso brasileiro, essa reação é muito parcial, porque o atual modelo de
desenvolvimento implementado, liderado, conservado e reproduzido pelo
lulismo ainda mantém traços muito flagrantes do neoliberalismo a
despeito de colocar uma ênfase maior em políticas redistributivas. A
dinâmica brasileira é mais de atuação do Estado sobre a sociedade, como é
também a dinâmica do governo de
Hugo Chávez, ou seja,
uma dinâmica muito concentrada na questão do Estado e na tentativa de
controlar a independência dos movimentos sociais de base. Tanto um
quanto outro, com diferentes matizes, tende a erodir as bases sociais de
uma alternativa socialista, porque acabam fazendo com que os setores
mais econômicos sejam incorporados ao Estado. No caso da
Bolívia,
consigo identificar uma dinâmica mais centrada numa contradição, num
conflito entre os movimentos sociais de base e o governo, como também
acontece no Equador. Então, entre essa tentativa de o Estado de
controlar os
movimentos sociais,
e a reação dos movimentos sociais a esse controle do Estado, é que está
sendo decidida a política de esquerda na América Latina, e
consequentemente o futuro dessa mesma política.
IHU
On-Line – Especificamente no Brasil, como avalia as discussões sobre a
possibilidade de o governo brasileiro flexibilizar as leis trabalhistas e
de implantar o modelo trabalhista alemão no Brasil? Quais as
implicações para o mundo do trabalho?
Ruy Braga –
Evidentemente essa é uma tendência mundial – e brasileira também. Basta
analisar a década de 1990 em termos de flexibilização da legislação do
trabalho, aquilo que na
Sociologia do Trabalho
se chama “contratualização ou precarização” no contrato de trabalho,
com a intervenção de inúmeras formas de contratação por tempo
determinado, inúmeras formas de contrato temporário etc. Se o governo
Dilma
aceitar o princípio do acordado sobre o legislado, estará evidentemente
contribuindo para o aprofundamento da flexibilização da precarização,
que já é muito alto no país.
O mundo do trabalho brasileiro é
fundamentalmente precário, ou seja, os trabalhadores encontram funções
de trabalho e de contrato tão precarizados, que é necessário o apoio e a
intervenção de um terceiro para garantir o mínimo de reconhecimento ou
de direitos. E esse mínimo é basicamente a legislação do trabalho, ou
seja, se, em benefício de alguns setores que são mais organizados, se
apoia ou legaliza o princípio do acordado sobre o legislado, estar-se-á
efetivamente impedindo ou bloqueando que os direitos se generalizem.
IHU
On-Line – Ao mesmo tempo em que há uma apatia política, surgem novas
manifestações sociais como Os Indignados e os acampados de Wall Street.
Como vê essas novas manifestações? O que os movimentos sociais precisam
para ter representatividade política junto à sociedade civil e
mobilizá-la novamente?
Ruy Braga – Existe uma dinâmica
de mobilização internacional que se expressa tanto na Europa como no
mundo Árabe. Isso é uma constatação mais ou menos evidente. Porém, é
importante destacar que existe uma interconexão entre essas
manifestações, ou seja, a esperança da revolução árabe de alguma maneira
fertiliza a juventude europeia, da mesma maneira que repercute sobre a
juventude nos Estados Unidos. Então, tem-se uma nova dinâmica de
mobilização, tanto do ponto de vista de um impulso democrático dos
setores da juventude como também um impulso de democratização que se
espalha pelos setores da classe trabalhadora, haja vista, por exemplo, o
processo do Egito e da Tunísia.
Costumo dizer que a
juventude europeia
e os setores mais precarizados e explorados, submetidos aos contratos
temporários – que assumem os piores postos de trabalhos disponíveis no
mercado, que não conseguem perceber um horizonte de progresso
ocupacional, um progresso social –, são os mais atacados pelas políticas
de austeridade, pela contenção de despesas e gastos sociais e pela
diminuição da rede de proteção pública. Assim, tais setores estão
propriamente lutando pela manutenção, pela conquista e pela ampliação de
direitos. Eles são, de fato, uma força profundamente progressista do
ponto de vista político. Existe uma simbiose entre esses diferentes
movimentos,
Occupy Wall Street,
Os Indignados e a
Primavera Árabe,
pensados evidentemente do ponto de vista da juventude, que se engaja no
processo de mobilização por mais democracia e assim por diante. É
evidente que há um plano de fundo, que é a crise econômica. A crise
econômica acelera e catalisa essa mobilização.
O caso brasileiro
é um pouco diferente, porque a crise chegou tardiamente do ponto de
vista dos ritmos de espalhamento da crise. Desde o ano passado nós temos
identificado uma série de iniciativas nacionais bastante radicalizadas,
como as
greves nacionais de setores de trabalhadores, greves nacionais dos
Correios, dos bancários, dos peões das obras do
PAC.
Tem havido ampla mobilização nacional de professores de ensino
fundamental. Há uma retomada da dinâmica da mobilização social, que
tende a fortalecer o movimento sindical crítico e acrescentar
propriamente contradições àquele movimento sindical governista. O
momento atual é de transição na direção de retomada de um ciclo de
mobilização sindical e dos trabalhadores, que tende a se espalhar também
pela juventude.
(Por Patricia Fachin)