terça-feira, 8 de janeiro de 2008

Sobre Herzorg e “O Homem Urso”

*Arthur Lobato
Uma coisa é ter em mãos cem horas de material filmado em cinco verões no Alasca, com cenas incríveis de um ser humano convivendo com ursos selvagens até o dia de sua morte, por um urso.
Outra coisa é chamar Werner Herzorg, em plena juventude aos 70 anos, para a partir deste material fazer um filme. Não um filme sobre ursos, mais que um filme sobre este homem e sua relação com os ursos, mas um filme que lança perguntas, sem julgamentos, sobre o que é um ser humano e suas motivações para fazer o que faz.
Herzorg roteiriza, entrevista, narra em off, com sua voz rouca e cadenciada, procura parentes, amigos, o legista, pilotos, ecologistas, entre outros que conviveram com o homem urso. Nas contradições de opiniões, Herzorg, sem tomar partido, tenta lançar luz sobre a questão que norteia o filme. Quem é este homem, o que o motivou a conviver com ursos selvagens no Alasca durante 13 verões?
Herzorg não dá a resposta, ele constrói um filme para que cada um, ao ver o filme tenha suas próprias respostas e dúvidas. Como cineasta, vê o olhar do cineasta ecologista, usando na edição, além do material filmado intencionalmente pelo homem urso, cenas filmadas ao acaso, de beleza cinematográfica, além da intencionalidade do autor - como o vento serpenteando a mata, os mosquitos, milhares, como nas histórias de Tio Patinhas no Alasca.
Herzorg vai com uma câmera e um cinegrafista ao Alasca, ele que já filmou na selva amazônica, no deserto do Saara, grande explorador, documentarista, cineasta que admiro intensamente. Herzorg entrevista, filma, narra, edita com o material filmado por ele, o material filmado pelo homem urso e constrói um dos melhores filmes já vistos, sobre um homem que fez a ruptura entre a cultura (civilização, humanidade) e a natureza (os ursos e seu habitat). Os esquimós, conforme entrevista, sempre viram no urso um inimigo, um animal, carnívoro, que ataca em busca de comida, mas o esquimó respeitava o urso, animal selvagem, não invadindo seu habitat, e matando ursos em caso de defesa. Havia o limite entre o homem e a natureza. O homem urso rompeu esta regra de convivência entre humanos e animais selvagens durante 13 verões.
Este homem urso, meio psicótico no meu entender, alcançou fama defendendo os ursos, foi até no Lary King (programa de entrevista americano que o Jô Soares copiou), ecologista radical para uns, maluco para outros.
Você tem que ver o filme, para entender o método de filmagem radical do homem urso, ele se aproxima dos ursos, gigantescos, toca seu nariz, filma lutas entre eles a poucos metros, mantém uma câmera no tripé, onde fala para a câmera, com o urso bem perto dele tipo uma “passagem” - cena em que o repórter aparece com o tema da reportagem ao fundo, e tem uma outra câmera nas mãos.
A câmera digital leve possibilita uma imagem perfeita, transcrita para filme, fica mais incrível ao ser exibida no escuro da sala de cinema. Entramos no filme, na magia do cinema, e conhecemos várias facetas do personagem; seus discursos, revelando seu “eu” solitário por meses. Ele faz da câmera sua “escuta” terapêutica. Estes discursos fragmentados, desesperados, não por comunicação, mas soando como desabafos, reflexões, uma busca de entendimento de si próprio, falando para a câmera em voz alta revela um homem que chama a si mesmo de “guerreiro gentil”. É um paradoxo, pois como um guerreiro pode ser gentil? São os dois lados de sua mente clivada. Ele diz que já bebeu demais, viu a luz, e a causa dos ursos é sua razão de viver e por isso não bebe mais. Noutra cena reza para Deus, Alá e “aqueles que flutuam na água”, referencia aos deuses hindus(?) para que a chuva venha. E a chuva vem (pensamentos mágicos, onipotência do pensamento), e ele agradece a esta trindade mística.
Em outra cena filma os “turistas” que vão fotografar os ursos, mas ele atrás das folhagens mais parece um animal observando os humanos.
Na entrevista com os pais a mãe tem um ursinho de pelúcia no colo da mãe, que o filho levava para o Alasca, e filmes caseiros mostram ele criança, brincando com esquilos, colocando o dedo no nariz do esquilo como fez com raposas e ursos adultos no Alasca.
Sobre este filme cheguei a redigir um texto sobre ética na imagem que iria apresentar no Congresso Nacional de Jornalistas, não sobre o filme, mas sobre um procedimento ético do cineasta Herzorg.
No dia de sua morte por um urso selvagem, que já tinha sido dopado anos atrás para extrair um dente, e tinha uma marca tatuada, como “identificação”, a câmera estava ligada com a tampa na lente, e gravou o audio, sem imagem, o ataque do urso e os gritos de morte do homem urso e de sua namorada, que o visitava neste último verão apesar dos mosquitos e certo receio do ursos. Na cena Herzorg, em silencio ouve o audio em silencio, com o fone de ouvido, se emociona, e diz para a proprietária do material, uma ex namorada ecologista, que dirige a “fundação” do homem urso: “Não ouça, destrua esta fita, ela vai ser um elefante branco para você”. Em entrevistas após o lançamento do filme Herzorg afirma “Não vou fazer um “Stunff film” (filmes geralmente pornográficos, feitos nas guerras ou em estúdios, onde se estrupam e matam pessoas na frente da câmera. Esta é a “natureza” humana...)
Isto é ética na imagem.
Se fosse no Brasil aposto que o diretor brasileiro ficaria em todos os programas de entrevistas, dizendo o contrario, coisas tipo: “Sei que é chocante, mas não podia deixar o espectador sem ouvir esta cena”, num claro discurso maniqueísta, necrófilo, de busca de audiência.
A entrevista do legista que ouviu o audio é terrível, pois ele narra o que ouviu, e que de dentro do urso foram tirados 4 sacos de restos humanos do homem urso e sua namorada ...
O piloto fala que viu uma mão, com pedaço do pulso e o relógio, que ainda funcionando foi dado meses depois para a ex namorada, e me lembro da tristeza do homem urso ao ver um bracinho de urso, devorado pelos mais fortes, uma caveira de ursinho, também devorado pelos ursos maiores famintos, uma raposa morta e seu inconformismo com a morte.
Taís acrescenta numa conversa que tivemos, a fala final de Herzorg, quando ele dá sua opinião de forma dialética num discurso duro, incisivo, em contraste com cenas belíssimas do urso pescando, mergulhando na água azul, parecendo brincar, tão humano com as solas dos pés fora da água. Herzorg afirma no texto, a questão da barreira entre o humano e o selvagem e usa cenas de close dos ursos onde o homem urso captura bem perto o olhar do urso. Herzorg afirma que não vê no olhar do urso mais do que o vazio de um animal selvagem, pronto para atacar em busca de comida, e acrescento: sem a possibilidade da intermediação simbólica, do discurso via linguagem.
Para terminar venho com uma questão do meu imaginário. Será que a mulher ao ver o namorado, homem urso tão perto do urso, não se assustou? Gritou, e fez com que o urso atacasse ambos? Ou o urso sentiu o “cheiro’ do medo da mulher ou será que ela menstruou e o cheiro da menstruação “surtou” este urso, já dopado antes, e talvez o doping, a inserção da “cultura” humana no sangue deste urso, possa tê-lo feito virar um urso psicótico. Ou talvez, apenas o instinto básico da fome foi a causa da morte do homem urso. Afinal são os instintos que regem a vida animal - fome e sexo - já dizia o bom e velho Sigmund são as pulsões, que nos movem também. Questões que levo na tentativa de entender o que não tem entendimento, a morte, o fim, o momento derradeiro da vida.
Não perca, isto é cinema, isto é Herzorg.

*jornalista e psicólogo

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